Quando a Páscoa se anuncia em casa
A Páscoa é a maior celebração dos católicos e, à mesa, é das mais curiosas festas nas quais o ovo é rei. O ovo, esse elemento de riqueza alimentar, é também o símbolo da renovação, de uma nova vida e para alguns a ilustração de passagem para outra vida. Talvez por isso os Etruscos o pintavam nas paredes de locais funerários.
Regueifa Doce
Independentemente da religião, e sem precisar de chegar ao pecado da Gula, todos celebrar esta época à mesa. Tenho já escrito que, para mim, a maior invenção culinária é o pão e que, possivelmente, os primeiros doces foram obtidos a partir de massa de pão enriquecida com mel, azeite, ovos… Mas na Páscoa a variedade de “Bôlas e Folares”, só em Trás-os-Montes, é muito rica. Aqui os folares são salgados e em outras regiões fazem-se folares doces como por exemplo no Algarve. Mas no Algarve ainda se fazem também os “Bolos de Folha” ou “Bolos do Tacho”. Por todo o país há muita variedade de bolos e, de facto, a grande maioria são massas de pão enriquecidas. Os exemplos são muitos: “Pão podre”, “Pão de 24 horas”, “Bolos fintos”, “Bola de azeite”, “Bola de Arouca”, “Pitos”, “Calços”, “Dormidos”, “Biscoitos escaldados”, “Esquecidos”, “Lagartos” … e depois ainda “Queijadas”, Pães-de-ló”, “Broa de pão-de-ló”, “Pão leve”, “Cavacas” e as inimitáveis “Amêndoas de Moncorvo”.
Na semana passada foi-me anunciada a Páscoa com uma caixa de correio com uma magnífica “Regueifa doce” e uns “Caladinhos”, uma generosa oferta do meu Amigo Ângelo Cardoso de Santa Maria da Feira.
Esta regueifa, a exemplo de outros doces, tem características especiais para a época da Páscoa. Apesar de ser confecionada durante todo o ano, no período pascal ou por encomenda, a receita é melhorada e acrescida a quantidade de manteiga e ovos. Mal a recebi, e depois de fotografada, cortei uma fatia de prova. Precisei de uma segunda. No dia seguinte experimentei fazer de uma fatia, uma torrada! Com uma colher de geleia de marmelo ficou de lamber os dedos…
Os “Caladinhos” vinham dentro de um saco plástico conforme se pode ver na fotografia. Não os conhecia e depois de os provar fizeram-me lembrar as “Súplicas” da minha terra, Bragança. Estas são ligeiramente maiores e mais baixas. A quantidade de massa deve ser a mesma só que nas “Súplicas” haverá menos farinha, e, portanto, a massa fica mais lassa e espalha-se mais no tabuleiro. A denominação destes bolinhos, parecidos até no nome com uns em Viana do Castelo, tem várias explicações locais quer aplicada à expressão de “comer e calar”, a uma estória da chegada de surpresa de um agente da PIDE a uma reunião em segredo, e alguém terá dito: “agora caladinhos” e ainda por terem nascido numa pastelaria de uma família Calado e os seus doces serem os “Caladinhos”. Cada um delicie-se com a sua versão nunca esquecendo de comer bem e melhor. E o doce nunca amargou…!
Estes doces aqui apresentado foram preparados na Doçaria Laidinha Magalhães que continua a produzir os seus doces cozendo-os em forno de lenha. Um luxo!
Boa Páscoa com apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Rua S. Tiago, 193
4505-525 Lobão (Santa Maria da Feira)
TL 256 911 163
Comer (n)a literatura
Pode dizer-se que a literatura também se come e muitos também a devoram. Nesta crónica vou contar-vos como se pode comer, e deliciar-se a ler, alguns alimentos que entram na literatura. Os alimentos ajudam muitas vezes a fixar o tempo em que decorrem alguns episódios, mas também os sentimentos associados ao consumo de alguns alimentos. Irei centrar-me em dois autores e um precioso alimento: o Pastel de Nata. Este doce é seguramente o mais internacional da nossa doçaria e cuja ancestralidade está patente em muitos relatos. Poderão ler, clicando aqui, uma abordagem por mim escrita com contribuições para a história do Pastel de Nata.
Inês Pedrosa, no seu livro Dento de Ti Ver o Mar, 2012, a sua personagem Rosa é uma fã de pastéis de nata. Mas tem outros apetites e mais citações em relação a alimentos ou circunstâncias de uma refeição. Logo no início sobre Rosa a autora escreve: “A quantidade de coisas que uma pessoa pode pensar de prato na mão, na fila de um buffet.” Na descrição de Gabriel, na complexa relação com Rosa, escreve que esta: “Sentava-se a lanchar com ela no café da livraria e sentia-se cada vez mais enternecido com o tempo que ela levava a saborear, pedacinho a pedacinho, o pastel de nata que às vezes se permitia comer.” A autora continua: “Mal a via atravessar a rua, Gabriel fazia um sumo de laranja e tirava um pastel de nata. Rosa dizia que não podia pecar tantas vezes, sob pena de nunca mais se livrar dos quilos em excesso. Sorria-lhe, lançava um piropo, dizia-lhe que ainda tinha uma margem de pastéis imensa até ficar gorda, e que a delícia de a observar a comer aquele doce era imperdível. Dizia-lhe que chegava a ter ciúmes do pastel de nata, …”. Mas a relação de Rosa com os doces não acaba aqui. Do Rio de janeiro envia a Gabriel um email: “O Rio de Janeiro é sensualidade pura. A luz desta cidade não tem igual – e a beleza das baías é de entontecer. … Podes até não gostar do Brasil, mas o Rio é irresistível. Gostaria de to mostrar. Hoje ao chegar ao quarto encontrei um ramo de rosas (simpatia do meu recém-descoberto progenitor) e pãezinhos de queijo com doce de leite (simpatia do meu agente, sabe que eu adoro estes pãezinhos – ou melhor, adoro doce de leite.” E não transcrevo mais pois espero que vos tenha aberto o apetite para ler este livro e também comer pastéis de nata. Confesso que sou um leitor continuado de Inês Pedrosa, de que sou amigo, e que me incentivou a escrever e publicar. Por isso a convidei a escrever o prefácio do meu primeiro livro Transmontanices, 2010. A presença de alimentos na obra de Inês Pedrosa é tão importante que apetece escrever como a autora utiliza a alimentação na sua obra.
Em 2006, Eduardo Prado Coelho, no invulgar livro Nacional e Transmissível, onde aborda detalhes da identidade portuguesa, tem um capítulo dedicado aos “Pastéis de Nata”. Começa assim: “Tenho um problema: gosto muito de pastéis de nata, mas não sei se consigo escreveu três páginas sobre este tema.” E começa por dar uma receita em prosa que quase parece poesia. “Depois vem aquele momento mais enternecedor de todas as receitas: leve ao lume brando até cozer. Eu gosto que os pastéis fiquem bem dourados. Estaladiços, claro. A opção final é por canela e polvilhar com açúcar. Um pequeno requinte.” E continua com descrições quase emotivas: “O que sempre me seduziu é que a imagem dos pastéis de nata, de preferência uma excelente fotografia a cores (uma vez que o austero preto e branco aqui não funciona), já sabe tão bem como os próprios pastéis. De certo modo, o sabor antecipa-se na representação, e o resto às vezes nem está à altura. O folhado estala entre os dedos, e sentes na sobreposição dos ingredientes a duplicidade infinita da matéria do mundo, a matéria na sua fragilidade ilimitada, pronta a transbordar para os dedos trémulos, e as dimensões infinitas do psiquismo humano: o que se pode imaginar de prazer a partir da imagem de um pastel de nata…”
Mais um texto que vos deverá provocar o apetite de o ler na totalidade e, naturalmente, ir à procura de pastéis de nata.
Os sublinhados são de minha iniciativa.
Boa gulodice!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Lenguado à la Portuguesa
Nestes tempos de confinamento, ficar em casa e comer em casa, faz-nos falta um pouco de diversão com humor. Desta vez, inspirado num livro publicado em Espanha, uma receita com humor, mas que, com imaginação, também podemos fazer na cozinha. O livro Cocina Cómica foi publicado em Madrid em 1897. O subtítulo do livro esclarece que se trata de Recetas de Guisos y Postres, Poesias Culinarias y Otros Excesos, o que faz abrir mais o apetite. O seu autor é Juan Pérez Zúñiga (1860-1938), jornalista, dramaturgo e escritor humorista. Por vezes utilizava o pseudónimo Artagnán. Publicou mais de 60 livros de narrativa, 14 livros de teatro e 3 de poesia.
Vejamos como se confeciona este linguado à portuguesa com tradução livre de minha autoria:
Compra-se um linguado que tenha espinhas, pele e cabeça; porque se não seria impossível cumprir a primeira prescrição da receita, que consiste em tirar a pele ao linguado, decapitá-lo e tirar-lhe as espinhas.
Primeiro parágrafo com ironia. Comprar o linguado com pele, cabeça e espinhas para as poder tirar…
Sobre uma fonte, travessa funda, untada com manteiga de vacas «libre-cambistas» coloca-se o linguado. Tira-se o pó com um raposo (possivelmente uma escova com pelos de raposa) e rega-se com um bom vinho de Jerez, polvilhando-o de seguida com sal e pimenta para que não se «escueza». Feito isto leva-se ao forno com lume forte a fonte, e o linguado também, porque deixá-lo de fora seria uma tontaria.
O que seriam as vacas libre-cambistas? E a ironia continua ao limpar o pó com escova fina. Também o termo escueza não é fácil. Poderia querer dizer para que não se coce, ou para que não se empole!
Por outro lado, numa caçarola pequena que tenha o fundo inteiro, colocam-se 25g de manteiga e uma colherada de fécula de «chuleta de huerta» dourada no fogo. Junta-se o betume saído do linguado ao assar e meio copo de leite natural, deixando ferver este unguento 3 ou 4 (não trezentos e quatro, eh?) e passa-se por um coador para uma frigideira, juntando então ao molho uma quantas alcaparras «vergonzosas».
Chuleta de huerta podem ser batatas, e neste processo vai preparar-se o molho ao qual se juntam alcaparras envergonhadas, ou tímidas, o que poderá significar em pouca quantidade.
Chegado o feliz momento de servir o linguado, leva-se para a mesa honestamente coberto pelo molho atrás citado, e rodeado de um esquadrão de caranguejos cozidos que acompanham o peixe no seu triste fim como se fossem irmãos da paz e da caridade destinados a prestar-lhe doces consolos. Do linguado não tem mais remédios do que fazer línguas. Algum comensal de mau gosto pode ser que renegue o linguado. Ele não passará de ser um deslinguado desprezível.
Não precisa de explicações. O humor acutilante do autor vai até ao fim.
Em Portugal é o prato favorito dos académicos da língua.
Será que quer dizer os amantes da má língua, ou dos linguarudos?
Importante é ir para a cozinha com boa disposição e, em casa e confinado, nada como cozinhar e divertir-se.
© Virgílio Nogueiro Gomes
Capa do livro do qual foi tirada a receita
Empada de Ostras
Recentemente, durante uma aula dada em vídeo conferência, bebi água e expliquei aos meus alunos que era água e que a caneca tinha uma receita de cozinha. Prometi que a divulgaria, mas, sendo difícil fotografar a partir da caneca, decidi transcrever a receita com tradução livre e dar umas dicas para eventual confeção. Eis a receita:
Numa tijela juntar pedaços de pão e cebolinhas. Adicionar anchovas e ostras. Misturar tudo e temperar com pimenta preta. Forrar uma forma de empada com massa*. Juntar a mistura do peixe na forma, e tapar com a massa e decorar, sem deixar de fazer um buraco no meio. Pincelar com ovo batido. Adicionar sumo de laranja com ovos e colocar através do buraco da cobertura. Cozer em forno baixo for 25 minutos até que a empada fique dourada. Os homens das ostras farão do mesmo modo com mexilhões.
*sugiro que façam uma “massa quebrada” com farinha, manteiga, gemas de ovo, água e sal. Depois de tudo bem amassado, que pode ser à mão, deve obter-se uma massa homogénea e bem lisa. Deve repousar um pouco antes de utilizar.
A receita é dada de forma simplista e que não sabe cozinhar poderá ter algumas dúvidas. Aqui lhes deixo algumas sugestões: Numa tijela juntar pedaços de pão e cebolinhas. Adicionar anchovas e ostras. Misturar tudo e temperar com pimenta preta. Juntar só estes produtos não dará um recheio consistente. Eu faria um pequeno refogado com azeite e as cebolinhas, poderia juntar anchovas de conserva e as ostras ligeiramente escaldadas; temperar com pimenta preta; depois mexer para envolver todos os produtos. Agora temos um recheio mais consistente e ligado.
Esta caneca foi-me oferecida por uma amiga depois de umas férias em Londres.
Pronto, vão para a cozinhar distraírem-se e improvisar a gosto, esta receita.
Bom apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Rosca Doce para o Natal
Roscas há por todo o país, especialmente do centro para o norte. Mas há roscas mais especiais do que outras, e muitas vezes têm um caracter local ou regional que estão longe das tradições chamadas nacionais.
O Natal é pródigo em surpresas e muitas delas doces. É sobre uma dessas que irei escrever. Segundo o “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, de José Pedro Machado p termo “rosca” tem origem obscura, provavelmente pré-romana. No século XVII é utilizado este termo por Manuel Bernardes e ainda mais antigo pois no século XVI aparece o termo enroscado… Quando nos referimos a rosca pensamos de imediato numa peça de pão branco, geralmente feito com farinha de trigo, e cozido em forma arredondada e com espaço central, ou até parecida com a regueifa de tradição duriense. Não vou aqui rescrever sobre esta variedades, mas concentrar-me no excelente presente de Natal que este ano me foi oferecido na sequência de um almoço de prestígio para a gastronomia portuguesa. Eramos poucos, mas valorosos, e senti-me muito honrado por me terem convidado.
Já escrevi algumas vezes que o pão é, para mim, a maior criação culinária da Humanidade. E que para mim os primeiros doces surgiram do gradual enriquecimento de massa de pão, inicialmente com ovos e depois acrescentos com mel, com açúcar, com canela, com azeite, com banha de porco, com aguardente, com canela, com frutos secos, … e muitos outros produtos.
Esta Rosca Doce para o Natal é bem o exemplo de criação de uma receita aproveitando o que existiria na época naquelas casas. Supõe-se ter nascido na região de Gândara / Baixo Mondego e já a Avó na minha amiga Olga Cavaleiro a fazia. E não faz parte dos cadernos ou livros de receitas. Esta rosca parte de uma massa de pão, enriquecida com pouco açúcar e poucos ovos, enriquecida com nozes e ou amêndoas e depois de enrolada e colocada, no tabuleiro de ir ao forno, é enfeitada (qual bolo-rei) com fatias de marmelada. Parece estranho. Experimentem e depois vejam o resultado. Era hábito fazer com os ingredientes de que se dispunha e, em boa hora, sem haver as caras frutas cristalizadas, a marmelada veio a calhar muito bem. Eu tive a sorte de receber uma rosca inteira, que partilhei. Em boa hora a minha amiga Olga Cavaleiro se lembrou de mim e me fez este regalo que não esquecerei. Aproveitei e fiz duas fotos onde se pode observar o pano bordado e uma renda que acompanham sempre estas festas.
O Natal não é de ricos nem de pobres: é de quem o quer viver e comemorar. Na simplicidade estão muitas virtudes.
Boas Festas e BOM ANO 2021.
© Virgílio Nogueiro Gomes
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