(Versão contemporânea do Chef Marco Gomes, Restaurante Foz Velha, Porto)
Sempre gostei muito de peixe apesar de ter sido educado numa região onde primava a carne. O peixe fresco estava associado a festa pois peixe fresco não chegava diariamente a Bragança. E a festa muitas vezes significava ir almoçar a Zamora. Peixe era peixe, bacalhau e polvo eram outra coisa: eram bacalhau e polvo. Depois vim a descobrir que Portugal “tem o melhor peixe do mundo”. Mas continuei a comer com muito prazer o bacalhau e o polvo. E depois quase ritualizar o seu consumo de acordo com os dias da semana. Cá ficou o hábito: segunda-feira é dia de bacalhau. E isto porque não havia mercado com peixe fresco. Hoje em dia é fácil de ultrapassar esta questão pois o desenvolvimento de fórmulas de conservar e o desenvolvimento da acua cultura permite com algum sucesso o abastecimento de peixe em condições corretas de qualidade. Mas eu continuei com o hábito de comer bacalhau à segunda-feira. Apesar da grande variedade de receitas de bacalhau mantenho-me fiel a poucas, e gostando sempre de experimentar novo receituário. Uma das receitas que mais gosto de comer é Bacalhau à Gomes de Sá, Bacalhau à Brás, Bacalhau à Lagareiro e Bacalhau Cozido com Todos. Sempre que não tenho compromissos vou ao mesmo restaurante no qual, à parte, servem-me, uma molheira com azeite a ferver por saber que gosto do bacalhau bem regado.
Escrevo esta crónica do Brasil. Já tenho escrito sobre a dificuldade de sucesso de alguns restaurantes portugueses no estrangeiro. E particularmente no Brasil. Depois de mudar de instalações fui ao restaurante “Marquês da Varjota”, na Rua Frederico Borges, 426 em Fortaleza. Eu vinha do meu ensaio semanal de preparação do Carnaval, vou voltar a desfilar no Maracatu Rei de Paus, com vontade de comer polvo. Tinha acabado ao almoço e então optei por Bacalhau à Gomes de Sá. Esta receita, aliás como todas, precisa de três produtos fundamentais de grande qualidade: o bacalhau, a batata e o azeite. Eis uma trilogia de elite. Até parece que não confecionávamos bacalhau até metade do século XIX, época em que se generaliza o consumo de batata em Portugal. Portugal abastece-se de bacalhau desde o século XIV sendo o porto de Viana do Castelo o primeiro porto de descarga daquele pescado. Talvez por isso, é no Minho que encontramos a maior variedade de receitas de bacalhau. Mas dá para refletir sobre as receitas mais conhecidas e mais confecionadas terem todas nos seus ingredientes a batata. Mesmo os Bolinhos ou Pastéis de Bacalhau. Exceção para o Bacalhau Espiritual que é uma receita nascida em meado no século XX. O bacalhau foi sempre tão importante para a população portuguesa que até consta que quando D. Maria I isentou o bacalhau de um imposto a população, querendo agradecer à Rainha a quebra desse imposto, e regressando ela de um passeio no rio Tejo, a obrigaram a fazer um pequeno percurso a pé no Terreiro do Paço, pela manifestação de júbilo de milhares de pessoas que lhe quiseram agradecer.
Consta que a receita do Bacalhau à Gomes de Sá terá nascido no Restaurante Lisbonense no Porto. O seu autor, José Luís Gomes de Sá (1851-1926), era filho de um grande comerciante de bacalhau. Perante a falência do seu pai viu-se obrigado a trabalhar tendo enveredado pela profissão de cozinheiro. Ora terá sido neste restaurante que instalou a receita recomendando aos seus seguidores que “se alterar qualquer coisa, já não fica capaz.” A receita não tem segredos, e por isso, e por ser uma mistura de ingredientes e formas de confeção brilhantes se tornou num ícone dos pratos de bacalhau. A delicadeza da receita é atribuída ao fato de as lascas de bacalhau ficarem de molho em leite que as deixará mais macias.
Vamos então à receita:
O mesmo peso de batatas e de bacalhau. Três dl de azeite, uma cabeça de alho, quatro cebolas, quatro ovos cozidos e um litro de leite por cada quilo de bacalhau. Azeitonas pretas, salsa, sal e pimenta a gosto. Começa-se por demolhar o bacalhau. (Tenho que confessar que já experimentei excelente bacalhau congelado já demolhado). Depois coze-se, deixa-se arrefecer e retiram-se as peles e espinhas ficando o bacalhau em lascas. Colocam-se as lascas em recipiente alto e cobrem-se de leite bem quente, onde devem ficar entre duas a três horas, de molho. Entretanto cozeram-se as batatas com pele, pelaram-se e foram cortadas às rodelas. Para uma frigideira alta cortam-se as cebolas às rodelas, pica-se o alho e rega-se com o azeite. Deixa-se aloirar a cebola sem refogar. Juntam-se as lascas de bacalhau, escorridas, e as batatas. Envolve-se tudo e tempera-se com sal e pimenta a gosto. Não se esqueçam de provar antes de temperar! Coloca-se este conjunto em tabuleiro de barro de ir ao forno. Enfeita-se com as rodelas de ovo cozido e vai ao forno bem aquecido por cerca de a dez a quinze minutos. Retira-se do forno e enfeita-se com salsa picada e azeitonas pretas. Eu gosto do bacalhau bem azeitado. Por isso termino-o, muitas vezes, com uma rega ligeira de azeite a ferver. Tão simples, tão fácil e tão bom…
Comi um Bacalhau à Gomes de Sá em excelente estado no “Marquês da Varjota”. Fiquei na esplanada pois não consigo habituar-me aos ambientes excessivamente gelados dos interiores dos restaurantes. Eu refugiei-me em Fortaleza a fugir do frio invernoso de Portugal. Mas sentado na esplanada tinha à minha frente uma pintura em “trompe l’oeil” como se estivesse sentado na esplanada da Pousada do Monte de Santa Luzia em Viana do Castelo. Melhor, como se ainda estivesse no tempo em que aquela unidade era hotel. E isto porque a curta distância estava reproduzida uma “Minhota” em trajo domingueiro como havia alguns dias da semana enquanto era hotel. Depois lá está a igreja de Santa Luzia, o rio Lima e o oceano Atlântico.
Esta receita leva-me a repetir a minha surpresa quando folheei o primeiro livro de cozinha luxemburguesa. Já surpreendido pelo prefácio onde se constata que a dimensão de portugueses residentes naquele Grão-Ducado levava a considerar como seus pratos alguns de bacalhau instalados pela nossa presença. E o mais destacado é o “Gratin de Morue” tendo como subtítulo explicativo “Bacalhau à Gomes de Sá”.
Bom Apetite. E não esqueçam que o bacalhau fica melhor ainda acompanhado por um bom vinho.
© Virgílio Nogueiro Gomes
JAN2011
Segundo o meu amigo Gonçalo dos Reis Torgal justifica-se a seguinte correção, que transcrevo:
"Quem criou o Bacalhau à Gomes de Sá foi realmente o José Luís Gomes de Sá que, ele mesmo, não sei se herdado do Pai ou não, tinha um Armazém no Beco dos Bacalhoeiros, sobre a Ribeira, e era um excelente cozinheiro amador, que cozinhava para os Amigos. A sua grande especialidade eram os Bolos de Bacalhau. Um dia estando farto de cozinhar os tão apreciados Bolinhos de Bacalhau, tendo à mão TODOS os ingredientes necessários para o efeito, resolveu fazer com eles um prato novo. Assim nasceu um novo bacalhau exactamente com tudo o que entra na confecção dos Bolos de Bacalhau: Bom Bacalhau, bom azeite, boa batata, cebola, ovo, salsa. A receita, que ganhou o seu nome, foi por ele vendida, em período de aperto financeiro, por 50 mil réis a um tal João, proprietário do Restaurante Lisbonense, no Porto num beco, cujo nome não me ocorre que sai da Rua do Bonjardim, mais ao menos na Praça D.João I onde havia, ainda no meu tempo, óptimas casas de comer. Tudo isto foi estudado pelo Jornalista e escritor Brasileiro João Figueiredo, que possuia a receita original e a cópia da carta que o José Luís Gomes de Sá endereçou ao tal João, a qual terminva assim: João, se alterares seja o que for desta receita, isto não fica capaz".