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Recentemente fui convidado para participar, em direto, no programa da RTP, “Verão Total”, a propósito das 7 Maravilhas da Gastronomia, para me pronunciar sobre o “Pastel de Bacalhau” candidato por Lisboa. De início apreensivo, e a brincar, perguntei o que não poderia dizer perante as câmaras. E isto porque nos bastidores sabem a opinião que tenho sobre este concurso e sobre alguns detalhes com os quais não estou de acordo. Um concurso é um concurso, e só foram a concurso as receitas que foram candidatas, e apresentadas de acordo com o regulamento. Ora, o regulamento, é que poderia estar mais bem feito e aí o Conselho Científico deveria, possivelmente, ter apresentado outras soluções. Apuradas as 21 finalistas, acabaram as discussões e agora o público em geral que eleja destas 21 as 7 premiadas.

Mas o que interessa é a visibilidade e grande promoção que este concurso traz a algum do nosso valioso património culinário.

Mais uma vez respondo categoricamente que o pastel de bacalhau não é uma consequência direta das Descobertas. O pastel só começa quando foi introduzida a batata em Portugal, e é a batata que fará o pastel entrar em decadência. A primeira notícia de batata em Portugal está datada de 1760, e só em 1798 a rainha D. Maria I publica um incentivo à plantação da batata nos Açores. Precisamente nesse há a notícia de plantação de batata no Continente quando a Academia das Ciências entrega a medalha de oura a D. Teresa de Sousa Maciel pela sua produção de batata. Curiosamente a primeira receita de bacalhau em forma de “bolinho” ou “pastel” é em 1841 no livro “Arte do Cozinheiro e do Copeiro” do Visconde de Vilarinho de S. Romão que publica também nesse mesmo ano o livro “Manual Prático da Cultura das Batatas”, mas a sua receita assemelha-se mais à nossas pataniscas. Ora o Visconde é filho da D. Teresa de Sousa Maciel.

Só em 1876 no livro “Arte de Cozinha” de João da Mata nos aparecem duas receitas identificadoras do pastel de bacalhau mais parecido com os que hoje conhecemos: “Pastelinhos fritos de bacalhau à Holandeza” e “Pastelinhos de bacalhau”. Os primeiros são muito semelhantes aos atuais com a exceção de se lhe juntar naquele tempo queijo ralado. Segundo o  meu amigo, e sabedor, André Magalhães ainda hoje se fazem na Holanda "Bolinhos de Peixe" em tudo idênticos aos nossos de bacalhau mas que eles confecionam também com peixe fresco. Quanto aos outros têm a particularidade de não serem fritos mas cozerem no forno em formas de pastel de nata. Já experimentei esta modalidade, mas sem queijo, não me tendo satisfeito. A fritura dá-lhe outro encanto. No entanto esta receita tem o que eu considero a proporção ideal de bacalhau / batata, o bacalhau deve ser o dobro da batata. Esta proporção era usada em minha casa desde sempre.

Depois, em 1903, surge uma compilação de receitas efetuada por J. M. Sousa Pereira que no livro “A Cozinha Moderna” apresenta uma receita que se assemelha às atuais mas na fritura é feita em manteiga de porco (?). Não fiz a experiência…

No ano seguinte, Carlos Bento da Maia, no livro “Tratado de Cozinha e de Copa” é que vem apresentar uma receita normalizadora e que tem o título de “Bacalhau em bolos enfolados”, e possivelmente daqui vem a designação de “bolinhos de bacalhau”. Esta receita utiliza leite para fazer a ligação do bacalhau com as batatas e quanto aos ovos bate as claras em castelo. Acrescenta que a fritura deve ser feita em azeite abundante “para que os bolos mergulhem nele sem tocar no fundo”.

A partir desta data os “bolinhos de bacalhau” no Norte ou “pastelinhos de bacalhau” no Sul, nunca mais deixaram de marcar presença nos receituários de culinária portuguesa. Quanto à sua origem não queria alongar-me muito. Autores categorizados como Maria de Lourdes Modesto ou Maria Emília Cancella de Abreu atribuem a sua origem ao Minho. Ainda, a obra “A Cultura Gastronómica em Portugal” do CFPSA e também “A Cozinha do Minho” de Alfredo Saramago são categóricos a considerarem esta preciosidade como originária do Minho. Perdoa-se aos lisboetas quererem a sua paternidade…!

No início do texto afirmei que o pastel ou bolinho só existem desde a aparecimento da batata mas foi esta que contribui para a sua decadência pois a alteração da proporção entre a quantidade de bacalhau ou batata utilizados transformou, acreditamos que por razões económicas, o pastel de bacalhau em pastel de batata.

Em minha casa, e lembro bem de assistir à sua confeção, usava-se para meio quilo de bacalhau, duzentos e cinquenta gramas de batata. Claro que estas medidas às vezes algumas vezes alteravam pela sensibilidade de quem confecionava. A qualidade da batata variava e algumas eram mais rijas, outras mais farinhentas. Depois de cozido o bacalhau (quantas vezes o bacalhau utilizado para os pasteis eram as sobras do “Bacalhau cozido com todos” da véspera) limpava-se bem de peles e espinhas. Quando trabalhava e encontrava uma espinha reclamava com o cozinheiro e por cada espinha deveria perder um dia de férias. Depois o bacalhau era desfiado à mão e colocado num pano resistente fazia-se uma bola que era pressionada com as mãos e pulsos até o bacalhau ficar completamente desfiado e leve. A minha Mãe dizia que esta operação era fundamental para os pastéis ficarem bem fofos. Entretanto as batatas, que cozeram com pele, eram reduzidas a puré ao qual se adicionava sempre umas raspas de noz-moscada. Entretanto coloca-se o bacalhau e o puré de batatas num recipiente grande, junta uma cebola média muito picadinha e um ramo de salsa também picado e mexe-se tudo ligeiramente. Depois incorporam-se quatro ovos inteiros um a um até sentir que a massa tem uma consistência uniforme. Chega agora outro momento importante: provar a massa. Conforme se sentir tempera-se com duas colheres de chá de vinho do Porto, e sal e pimenta branca. Eu estava sempre por perto pois gostava de lamber a colher por onde passou o vinho. Agora, depois de colocar em recipiente alto, azeite abundante, e com a ajuda de duas colheres moldam-se os pastéis que vão à fritura. De seguida eram colocados sobre papel absorvente e depois colocados em travessa, nunca sobrepostos para não se machucarem.

Pastéis de bacalhau como entrada com salada verde ou feijão-frade, ou prato principal de preferência acompanhados de arroz de tomate. Ainda um excelente petisco fora das refeições. Naturalmente saberão melhor se foram acompanhados por um bom vinho.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Julho 2011

"Pasteis de Bacalhau" confecionados na ADEGA FAUSTINO em Chaves