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Na sequência das açordas, e conforme prometi no respectivo texto, vamos ver como o pão é um elemento fundamental na tradição alimentar portuguesa e que ajudou a criar um valioso receituário culinário.
As açordas podem ser sopas, guarnições ou acompanhamentos, e pratos completos.
As migas e as sopas de pão vamos tratá-las separadamente, sendo certo que o que levou à designação de sopas foram os caldos aos quais se adicionava pão. Escrever “sopas de pão” parece então um pleonasmo. As designações populares levam a estas distinções e provocadas, designadamente, por outros elementos que engrossaram os caldos como a castanha e posteriormente a batata. E já com os ditos populares aprendemos que: “Sopa sem pão nem no inferno dão”.
As migas devem derivar do verbo migar que genericamente significa desfazer em migalhas ou esfarelar pão para o caldo.
Segundo Maria de Lourdes Modesto, na sua Grande Enciclopédia da Cozinha, as migas são um “Prato típico português feito de pão amolecido, cozinhado depois numa gordura, geralmente de porco.” Continua a sua descrição informando que geralmente se junta a carne e o toucinho que deram origem àquela gordura. “Este prato, que é muito vulgar no Alentejo e nas Beiras, também se pode fazer com batatas; esta forma tem, contudo, menor valor gastronómico e menor número de apreciadores”.
É curioso constatar que, de facto, as técnicas culinárias não se ajustam de igual modo a produtos distintos, independentemente da sua função semelhante. As migas são, de facto mais apreciadas as confeccionadas com pão.
No Dicionário – Almanaque de Comes e Bebes da autoria de Cláudio Fornari, apresenta as migas como sendo uma “Sopa de pão típica de Portugal, especialmente do Algarve, Alentejo, Beira e Trás-os-Montes, onde existe uma centena de diferentes receitas. Basicamente é água, miolo de pão, azeite e sal, havendo contribuição variável de alho, toucinho, presunto, chouriço, pimenta, pimentão, ovos, carne de porco, louro, banha, queijo, ervas…;”.
Maria Lúcia Gomensoro no seu Pequeno Dicionário de Gastronomia atribui a origem das migas a uma tradição espanhola de comer ao pequeno-almoço cubos de pão ensopados em leite, e depois fritos. Refere a autora que quando acompanhadas por carne frita se transformam em prato principal. Apresenta esta composição como especialidades de Aragão e outras da Andaluzia, e conhecidas desde a Idade Média. A autora refere ainda que migas são um “Prato típico do Alentejo, Trás-os-Montes e Beiras, é geralmente a transformação de pão numa massa, frita com gordura de porco e acrescida de carne ou peixe e temperos.”
Noutra obra, Diccionario de Alimentación de Ginés Vivancos, as migas são definidas como pão seco, esmigalhado, ensopado em água ou leite e depois frito em azeite, toucinho ou manteiga. Se lhe é acrescentada carne ou outro elemento as migas chamam-se ilustradas. Apesar de o autor se referir à tradição espanhola complementa a sua informação escrevendo que as migas em Portugal são mais populares e variadas que em Espanha.
Mas como terão nascido as migas? O que as separa das açordas? À primeira vista parece a forma de finalizar as migas, envolvendo-as na gordura. Mas, a sua origem? Possivelmente só nos aparecem depois das açordas e como consequência destas. As migas podem também aparece-nos como um prato de recurso pela necessidade de não desperdiçar pão. São as migas possivelmente um elemento da alimentação mais pobre e que o engenho transformou num prato/guarnição de elite apenas reconhecido a partir do século XX.
Não será em si, pela técnica, que se pode definir a cozinha local ou regional, mas sim pelo hábito da sua repetição. A cozinha não é apenas a cozedura mas a forma de por em prática continuada uma receita. A receita não será somente a sucessão de procedimentos, ela é sobretudo a recolha e acréscimos de produtos e da vontade dos consumidores através dos tempos. As receitas de cozinha, mesmo da autêntica cozinha regional, são dinâmicas e tendem a evoluir. Demoravam cem anos a alterar? Talvez. Hoje a evolução é mais rápida.
Por isso vamos encontrar uma variedade de migas em quase todas as cozinhas regionais portuguesas. Certo é que não encontramos essa designação nos manuais e primeiros livros de cozinha. Tanto em Domingos Rodrigues (1680), como em Lucas Rigaud (1780) até João da Mata (1876) o termo migas não é mencionado. No entanto, na Sopa de queijo, e lombo de porco ou de vaca, de Domingos Rodrigues, se lhe tirarmos a carne, temos umas migas pobres ou sem conduto.
Surpreendente é verificar que Carlos Bento da Maia, no seu Tratado Completa de Cozinha e Copa (1904) apenas apresenta uma receita de migas mas que são doces, e obviamente confeccionadas com migalhas de pão.
Curiosamente é com Olleboma, na sua Culinária Portuguesa (1936) que nos aparece a designação migas associada às Açorda ou migas de bacalhau e Açorda ou migas de Carne de Porco à Alentejana.
Manuel Ferreira, com a sua Cozinha Ideal (1943), é verdadeiramente o primeiro livro de cozinha para profissionais do século XX, apenas nos indica uma receita de migas de feijão branco e utiliza o pão de milho, sem ficarem muito enxuto e também não terem muito caldo para não parecerem sopa.
Parece consensual que dentro do capítulo das migas, há um receituário que parece por si só ser uma categoria que são as migas de bacalhau, que no Alentejo adquirem a designação de “gatas”. A tradição de fazer migas com peixe e designadamente de bacalhau deveu-se ao baixo preço que este gadídeo tinha. Acresce as regras religiosas que desde a Idade Média até ao século XVIII obrigavam a comer peixe em cerca de cento e trinta dias por ano.
Como podemos então caracterizar as migas? São um produto culinário elaborado a partir de pão ensopado e depois terminada a sua confecção com uma gordura envolvente em processo de ligeira secagem. Depois temos todas as variantes que têm a ver primeiro com a variedade do pão, depois com a substituição do próprio pão pela batata, o acréscimo de temperos e outros componentes como grelos, feijão, espargos, couves, ovos, mioleira, bacalhau, e depois os acompanhamentos onde predomina a carne de porco frita e cuja gordura ajudou a terminar as migas. Também se fazem migas doces.
O que deu origem às migas é efectivamente o pão, omnipresente, com uma tentativa de substituição pela batata, mas não conseguida. É ao pão que se deve o início da preparação de todas as receitas.
Seria uma longa lista enumerar aqui a presença mas migas em todo o receituário regional português. Como curiosidade refiro que na inauguração da primeira Pousada de Portugal, em 19 de Abril de 1942, no almoço oficial, que se revestiu de acto político importante para a época, um dos pratos foi “Migas à Moda de Peroguarda”. Trata-se de migas bem alentejanas que levam ovos e mioleira. Lançou-se a partir deste almoço a moda das migas em restaurantes de elite?
Quando este ano, em Julho, se elegeram as 7 maravilhas de Portugal, em simultâneo um grupo hoteleiro e de restauração (ao qual pertencem Chefes de Cozinha de prestígio) lançou, via net, um concurso para a eleição das 7 Maravilhas da Gastronomia Portuguesa de que faziam parte as migas mas que não alcançaram votos suficientes para se elegerem nas 7 primeiras.
As migas com as suas variantes podem agradar a todos os paladares. E para terminar apenas cito Aquilino Ribeiro: “Quem não tem paladar não tem carácter”.
BOM APETITE
(C) Virgilio Nogueiro Gomes
Foto: Adriana Freire