(vista do meu quarto sobre o Rio Homem)

 

Genericamente chama-se cabidela a um guisado que, na sua fase final de confeção, se incorpora sangue do animal que se está preparando. Parece fácil assim descrito mas depois vamos descobrindo as habilidades de que o sabe fazer. Não se sabe desde quando esta prática se enraizou nos hábitos alimentares portugueses, sendo que também se fazem confeções com o sangue noutros países europeus. Seguramente podemos afirmar que foram os portugueses a levar estas tradições aos países novos, descobertos, pois ainda encontramos na sua maioria a expressão “cabidela” para significar a utilização do sangue no receituário. Desde Cabo Verde com “arroz de cabidela”, passando por Angola “galinha de Cabidela”, em Macau com a “cabidela de pato” até à India com a “cabidela de leitão”, ainda hoje a prática se mantém. Em Moçambique e Goa ainda hoje se mantém a prática da receita de Sarapatel que também utiliza o sangue, mas a forma de confecionar é diferente. É, no entanto, no Brasil que reencontramos a maior variedade de receitas com utilização do sangue e com atribuição da designação “cabidela”. Em todo o Nordeste é frequente encontrar, assim como em Minas Gerais. Por vezes esta designação é substituída por Molho Pardo que na opinião de Gilberto Freyre, no seu livro “Açúcar” afirma: “Quituques com aparência de brasileiros, são franceses, e refletem o francesismo que desde o século XVIII invadiu a cozinha portuguesa: a cabidela, por exemplo.” Outra referência para a origem do termo cabidela é expressa por Frei João de Sousa (1743-1812) que, na sua obra “Vestígios da Língua Arábica em Portugal”, para o verbete Cabidela, que classifica como “Termo de Cozinha”: “espécie de guisado, que se faz dos miúdos das aves de pena, particularmente dos perus. Os Árabes lhe chamam quebdia, guisado feito das entranhas, isto é, moela, fígado e fressura de qualquer rês. Deriva-se da voz quebdón o fígado.” Maria Lucia Gomensoro, define cabidela, no seu Dicinário de Gastronomia como: “Prato de cozinha portuguesa, é um ensopado de ave (pato, peru, galinha ou ganso), feito em um molho em que é misturado seu sangue com vinagre.” A dosagem de vinagre é uma das questões delicadas deste prato pois em excesso revela-se como um defeito.

A cabidela em Portugal continua associada aos conceitos de certas cozinhas regionais e em particular à do Minho. Pelas citações atrás podemos deduzir que já os árabes que estiveram na Península Ibérica  conheciam a receita e que poderá ter sido também adotada pelos francesismos culinários que nos invadiram. Certo é que nos tempos que correm assumimos a receita como uma “coisa” nossa. A cabidela não se faz só de frango ou galinha, mas também de leitão e poucas vezes de pato. Recentemente esteve em grande discussão a utilização do sangue fresco na nossa alimentação e restrições por questões de segurança alimentar fez com que muitos restaurantes gradualmente retirassem estas receitas das suas propostas.

Como já referi o Minho continua a erguer a bandeira das cabidelas associadas ao seu “frango pica no chão” de que o Concelho de Vila Verde se anima no fim-de-semana de 23 a 25 de novembro com um evento gastronómico no qual são vedetas o “Pica no Chão”, o “Pudim Abade de Priscos” e naturalmente o Vinho Verde. Recentemente desloquei-me a Vila Verde para ver criações de “Pica no Chão”, aos quais dedicarei uma crónica proximamente. Esta designação vem de os frangos serem criados em liberdade e se alimentarem do que vão “picando” do chão, tendo sido já homologadas quatro raças autóctones. Viagem especial para comer uma cabidela no restaurante Torres. Já tinha comida as suas cabidelas, e as suas deliciosas “papas de sarrabulho”, noutros locais, mas queria conhecer a origem. Tive a sorte de, chegado a Vila Verde sob um temporal de chuva, fui acolhido na forma mais hospitaleira que o Norte tem. Depois de alojado, fomos diretos para o Torres, onde se encontrava a Dona Maria Augusta Rodrigues Torres, matriarca de uma família empreendedora na arte de servir boa comida. Desde sempre ligada às tarefas culinárias, casada com um grande chefe de cozinha cuja carreira se desenvolveu em Lisboa e que, após um trágico acidente, faz regressar a família à terra de origem. A Dona Maria Augusta lembra-me que, antes de vir para Lisboa casar, já em Terras de Bouro era requisitada pelos clérigos locais para as confeções especiais em dias de festa. E nós sabemos como a Igreja sempre gostou de comer bem! Em 1981, o que era um café e casa de petiscos com fama, transforma-se no que é hoje o Restaurante Torres.

 

 

(Dona Maria Augusta em frente ao "seu" Pica no Chão)

 

Na nossa conversa, depois de recordar a história da sua vida, fomos diretos à cabidela de pica no chão. Tem uma criação pequena e por vezes tem que adquirir aos vizinhos. O frango tem que ser de origem, e morto por quem sabe para recolher o sangue ao qual se junta vinagre e um pouco de vinho verde tinto, mexendo sempre pra não deixar coagular. Depois o frango é escaldado para ser depenado. Delicada a operação seguinte de o chamuscar com aguardente e ter a certeza de que a pele ficou limpa. A seguir faz-se toda a limpeza interior e aproveitamento das miudezas. De seguida corta-se em pedaços. Atenção que este frango não como os “frangotes” de aviário. Estes frangos pesam entre dois quilos e meio e os três quilos! Prepara-se um estrugido com azeite, alho, cebola e uma folha de louro. Quando a cebola estiver bem transparente e alourada, junta-se água. Coloca-se o frango e deixa-se refogar, juntando água e sal, até o frango estar quase cozido. Com uma colher retira-se a gordura que fica a boiar, para a confeção não ficar enjoativa. Quando o frango estiver quase cozido junta-se o arroz carolino, sem lavar. Vai-se adicionando água sempre que necessitar. Deve mexer-se o arroz com alguma regularidade e quando estiver quase cozido junta-se, então, o sangue e mexe-se bem todo o arroz. Altura para provar e retificar o tempero com sal e vinagre. A Dona Maria Augusta é categórica: “prova-se sempre, é a garantia de que está bom”. À pergunta que lhe fiz se adicionava chouriço ou salpicão a resposta foi clara: “Não. Isto é arroz de cabidela de frango”. E eu tive a sorte de depois provar e deliciar-me a lamber os dedos. Comi parte do frango com osso à mão. Seria um desperdício limpar ao guardanapo e soube-me muito bem assim. Apesar de a refeição decorrer no restaurante a Dona Maria Augusta fez questão de servir um jantar como se fosse em casa. E para entrada um cozido simples, e para sobremesa umas maçãs assadas de apetecer levar para casa. Bem hajam!

Claro que a refeição foi regada com vinho tinto, para nosso prazer.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Restaurante TORRES

Lugar da Bouça

Ponta de S. Vicente

VILA VERDE

 

Telefone 253 361 619

 

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(Cozido de entrada)

 

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(Maçãs Assadas com Frutos Secos )