Eu sei que o tempo da aletria é no inverno e, especialmente, na época natalícia. De facto comecei esta crónica em tempo de inverno. Talvez porque me desabituei de passar cá o tempo frio, quando chego volta a apetecer-me a aletria. É um dos doces que recordo desde a infância, ao lado do arroz doce, e que também servia de mimo quando estávamos adoentados. Mas já que referi o arroz doce, a aletria também se faz com gemas ou sem elas, e a variação do açúcar é determinante para se sentir mais gulosa a confeção. Apesar de não constar nas receitas do caderno de minha Mãe, consegui reconstituir a receita que se confecionava em casa, com a ajuda da minha irmã Adelina.
Mas porque é que esta receita se pratica especialmente no Norte? É um enigma! Tanto maior quando sabemos que a aletria nos foi, possivelmente, legada pelos mouros que não habitaram o Minho e Trás-os-Montes onde a aletria continua a ser uma tradição. Vasculhei no principal tratado de cozinha mouro do período de ocupação ainda em Espanha, de Ibn Razin al-Tugibi (1227-1293) e nada encontrei. Encontrei em Marrocos, recentemente, uma aletria sem creme, cozida e montada em pirâmide, polvilhada com açúcar em pó e canela, amêndoa laminada, e depois tudo regado com mel. Foi numa refeição de família local, não encontrei em restaurantes.
A primeira referência escrita com a designação “aletria”, ou “alatria” como se diria em Itália, só no livro de Domingos Rodrigues com “aletria doce” que seriam os fios de ovos. Parece que o termo “aletria” deriva da palavra árabe “al-ibria” apesar de este não constar da obra de Frei João de Sousa “Vestígios da Língua Arábica em Portugal”, 1789. Curiosamente, Manuel Ferreira na Cozinha Ideal de 1933, livro feito com o propósito de formar os profissionais, apresenta a mesma designação de Domingos Rodrigues, “aletria doce” mas a receita corresponde à aletria que hoje se confeciona, e com gemas. Mais curioso ainda, num manuscrito fradesco de 1743, compilado por António de Macedo Mengo, surge “Aletria” e “Aletria Doce” que correspondem respetivamente à nossa aletria atual sem gemas e aos fios de ovos. Tem também as variações da “Aletria” de carneiro, de galinha e de vaca para as quais se utiliza o caldo respetivo para cozer a aletria. Posteriormente, em 1780, Lucas Rigaud apresenta uma receita de “Crema de aletria” semelhante à aletria atual com gemas mas uma finalização diferente, além de estar enriquecida com flor de laranja coberta e biscoito de amêndoas, tudo picado. Para finalizar junta claras em castelo e leva tudo ao forno até ter “boa cor”.
Vindo rapidamente para o século XX e no primeiro livro deste século, Carlos Bento da Maia em 1904, apresenta três receitas a que chama de “Aletria de leite”, “Aletria de leite com ovos” e “Aletria de ovos – Fios de ovos ou ovos reais”, cujos títulos não necessitam de mais explicações. Quase todos os livros de inventários de cozinha portuguesa incluem a receita. Maria de Lourdes Modesto, na Cozinha Tradicional Portuguesa apresenta uma receita, de Entre Douro e Minho, com aletria com ovos e mais açúcar que aletria e que fica bem escorrida de leite, e enfeitada com desenho de dois corações em canela. Maria Emília Cancella de Abreu redige receita idêntica mas com a nota de se confecionar em todo o país. Emanuel Ribeiro, no seu curioso estudo “O doce nunca amargou…”, publicado em 1923, refere-se assim: “Doce de aletria cozida em água e açúcar e distribuída em travessas ou pequenos pratos, ornamentado com grades ou arabescos executados com canela. Vulgar em dias de festa principalmente entre gente humilde”. Depois remete para a receita que é confecionada com gemas e água de flor de laranjeira, produtos raramente associados à alimentação humilde. Do Convento de Santa Clara de Elvas, também nos chega uma receita com a designação de “Aletria de ovos”, que acaba por ser uma creme com farinha de arroz com gemas e açúcar e sobre o qual são colocados os fios de ovos. Do Convento de Santa Mónica de Évora temos também uma “Aletria doce”, feita como a atual com gemas mas com a particularidade de juntar sumo de laranja, e receita idêntica aparece também no Mosteiro de São pedro das Águias em Tabuaço.
Mas se herdámos esta tradição dos árabes ou da influência dos estados independentes do que é hoje a Itália, onde se encontra pelo mundo está prática? No “Dictionnaire du Gastronome”, 2008, apenas se refere à massa para guarnecer sopas e por vezes para sobremesas doces. Na edição de 1938, o Larousse Gastronomique, para além de sugerir a utilização nas sopas também afirma a utilização para preparação de pudins e suflés. Não encontrei manuais com receituário de doçaria associado à exceção de Espanha onde, Ginés Vivancos afirma que foram os árabes que introduziram a aletria na Península Ibérica e que continua a ser confecionada nas regiões de Múrcia e Andaluzia.
Para além da Espanha também o Brasil ainda prepara a aletria, e neste caso, por influência dos portugueses. No livro “Cozinheiro Nacional” de autoria ainda desconhecida, atribuída por vezes a Paulo Salles, e publicado entre 1874 e 1888, ensina como fazer a aletria caseira e depois o uso igual ao da aletria que se vende já em massa. No extraordinário livro “Delícias das Sinhás”, com receitas culinárias da segunda metade do século XIX e início do século XX, editado em Campinas e 2007, encontramos duas deliciosas receitas. Uma, a de “Aletria d’ ovos” é uma mistura de aletria doce com fios de ovos e outra “Aletria” que é a forma mais tradicional de confecionar aletria doce com gemas. Encontrei ainda na Turquia uma sobremesa muito doce confecionada com aletria a que chamam "Tel Kadayf".
Não quero terminar sem partilhar a receita como se fazia em minha casa a aletria.. Para esta receita, coloca-se uma panela ao lume com água. Quando ferver juntam-se cento e cinquenta gramas de aletria e deixa-se ferver durante cinco minutos. Há quem coloque um pouco de manteiga para garantir que os “fios” da aletria não se colem, ou então vai-se mexendo com um grafo para se separarem. À parte juntam-se cinco centilitros de leite, cinquenta gramas de manteiga, um pau de canela, a casca de um limão e levam-se ao lume até ferver, e então juntam-se agora duzentos gramas de açúcar. Escorre-se a água de cozer a aletria, e junta-se o conjunto do leite. Deixa-se arrefecer ligeiramente e, à parte, batem-se quatro gemas que se juntam delicadamente na aletria de forma a não cozerem. Leva-se ao lume, mexendo com cuidado, para engrossar um pouco e garantir a cozedura das gemas. Um segredo: quando havia água de rosas, colocavam-se uns pingos. Depois de cozida a massa, retira-se a casca do limão, coloca-se a aletria numa travessa e depois de arrefecer enfeita-se com canela. Há quem coloquem também uma vagem de baunilha que se retira antes de servir.
A aletria ainda está viva e, hoje mesmo, num restaurante frente a minha casa, o Nógado da Família Brito, uma das sobremesas ao almoço será “Aletria”. Recentemente comi no Spazio Buondi - Nobre uma fantástica "Aletria" confecionada pelas mãos de fada da Justa Nobre.
Descubram agora o melhor generoso para acompanhar pois a aletria saberá muito melhor.
© Virgílio Nogueiro Gomes