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Tortas de S. Martinho
Já escrevi sobre estas tortas quando elaborei uma crónica sobre as “tortas” mais referenciadas nos inventários de cozinha portuguesa. A sua particularidade, ou a exceção, é o facto de estarem associadas ao culto de S. Martinho e que me levam a escrever sobre elas, com mais detalhe. E especialmente por estarem ligadas aos rituais de S. Martinho, que se celebra por estes dias.
Para melhor conhecer estas tortas desloquei-me a Penafiel, e fui direto à confeitaria “Docinhos de Penafiel” para recolher informações, ver os produtos e entender um pouco mais da sua história. Não sendo meu hábito dar receitas, quis conhecer como as confecionavam nesta casa. Parece que nos outros estabelecimentos a receita será idêntica, mas poderá sentir-se no paladar alguma diferença pelo tempero do recheio. Claro que a leveza da massa folhada ou mesmo da massa tenra, também devem influenciar na apreciação das tortas. Comecemos pelo princípio: inicialmente as tortas eram confecionadas com massa tenra. Posteriormente é que passaram a ser feitas com massa folhada sem estar fixada a data em que ocorreu esta nova forma de apresentar as tortas. Para a receita picam-se carnes brancas e vermelhas e refogam-se em azeite e cebola fininha, com salsa e temperam-se com piripíri e sal. Deixa-se arrefecer e depois recorta-se a massa folhada em forma semelhante à dos rissóis, coloca-se o recheio das carnes e leva-se ao forno. Depois de sair do forno polvilham-se com açúcar e canela, forma muito usual em cozinha requintada do século XVIII.
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Tortas de massa tenra
 Tudo terá começado com o Senhor António Bento, oriundo das Terras de Basto, que vem para Penafiel estabelecer-se com um negócio de doçarias, e confecionava as tortas, já agridoces, mas apenas por alturas do S. Martinho o que levou à designação das tortas.
Não se sabe ao certo a data nem a receita original destas tortas. Sabe-se que em 1861, com a aclamação de D. Luis, se celebrou e evento e, na descrição de Coriolano de Freitas se encontra um texto sobre alojamento local, onde se pode ler que havia um estabelecimento de José Lamas que “…era uma hospedaria muito frequentada pelo S. Martinho e aí se faziam “tortas” preparadas por José Bento. Ainda nesta data outra referência a um estabelecimento de “comes e bebes” de Luiz Teixeira, na rua da Cruz, no qual as tortas eram mais baratas cinco reis. Aqui levanta-se uma questão: quem era este José Bento? Porque as referências das tortas estão sempre associadas a António Bento. Seria José Bento o primeiro a confecionar as tortas e sendo familiar de António Bento lhe ensinou o segredo?
Certo é que em 1882, António Bento anunciava, num jornal local, “…aos numerosos fregueses e ao respeitável público que mudou o seu estabelecimento para a travessa de S. Mamede… onde encontrarão sempre TORTAS FRESCAS…”, particularmente durante os festejos de S. Martinho. Esta casa continuou em laboração até meados do século XX, altura em que quase se perdeu a tradição de confecionar as famosas tortas.
Em 1905, volta novamente ao jornal para anunciar que está no seu estabelecimento onde oferece “…os seus serviços na confeção das saborosas tortas”. É curioso como naquele tempo, e com uma população reduzida se utilizava o jornal para fazer a publicidade. Esta publicidade levou outros estabelecimentos a utilizar o mesmo método e, em 1907, vários estabelecimentos apregoavam a categoria das suas confeções, o que levou o historiador Dr José Coelho Ferreira, a quem agradeço as informações e investigação disponibilizada, a apelidar esse combate de publicidade em jornal, de verdadeira guerrilha a que chamou de “Guerra dos Doces”.
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Tortas de massa folhada
Em 1913, com a morte do senhor António Bento, o “Sr Antoninho das Tortas, como ficou conhecido, o Hotel do Comércio anunciava que fabricava “as afamadas tortas e pastéis” de Basto, especialidades do falecido “Antoninho das Tortas. E mais, “…anunciava e prevenia o público de que as legítimas tortas à moda de Basto, se encontravam à venda no seu estabelecimento.”
Muito interessante como uma receita regional que parece oriunda das Terras de Basto mas onde não encontrei esta tradição. Era frequente o receituário ser apelidado pela origem do seu autor. A designação de Tortas de S. Martinho parece ser do século XX. As notícias das tortas chegaram-nos sempre associadas aos festejos de S. Martinho, havendo nas nossas tradições regionais vários doces também apenas confecionadas de acordo com o calendário de festividades de origem religiosa. Soube que estas tortas também eram confecionadas com massa tenra. Não descobri quando se deu a alteração. Hoje são maioritariamente feitas com massa folhada. Também já se fazem em miniatura.
Mistério continua a ser, o facto de o recheio ser salgado, e o polvilhar com açúcar e canela é que lhe vem dar a classificação de ser um doce. Melhor seria considerá-las um agridoce!
Independentemente destas dúvidas o importante é que se mantenha a tradição e continue o seu consumo. Constatei que durante a segunda metade do século XX, praticamente deixaram de se confecionar as tortas.
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Tortas miniaturas
Para além da casa “Docinhos de Penafiel” onde estive e fotografei, soube ainda que se confecionam tortas na Padaria do Sameiro, Café Alvorada, Café Aliança e Café Cantinho. Quando forem a Penafiel não esqueçam, e aproveitem a experimentar.
Agora que estamos no S. Martinho, não “podendo ir à adega, e provar o vinho”, comam estas tortas e acompanhem com jeropiga.
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes