
“Adoração do Reis Magos”, pintura de Gregório Lopes (1490-1550), retábulo de S. Bento, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Habituei-me a que o dia de Reis era a data que fechava o período natalício. Os doces de Natal acabavam, os enfeites de Natal e o presépio retiravam-se, e especialmente era o último dia de consumo do bolo-rei. Da minha tradição apenas mantenho o bolo-rei, que acabo por comer várias vezes durante o ano pois algumas pastelarias o confecionam.
O dia de Reis tem origem numa celebração religiosa baseada no relato contando que três Reis foram guiados por uma estrela para o local de nascimento de um novo Rei, destinado a mudar o mundo, e então dirigem-se a esse local com oferendas. Melchior levou ouro como reconhecimento de realeza do recém-nascido, considerando como um Rei, Gaspar oferece incenso como reconhecimento de divindade, achando-o um Deus, e Baltasar em reconhecimento da sua humanidade, e que representava simbolicamente a imortalidade, oferece-lhe mirra e considera-o como um Profeta. Este ato vem transformar Jesus num Rei, que sofre as vicissitudes conhecidas sendo realmente um rei do sofrimento, sendo que a cora final que lhe é colocada não é uma tradicional em ouro e símbolo do poder, mas uma cora de espinhos e de humilhação. Certo que a vida de Jesus deu origem a uma nova religião que rapidamente se propagou e foi perseguida e mais tarde valorizada e aproveitada. Os caminhos da Igreja com assunção do poder temporal só foram possíveis pela força e, naturalmente, pelas mentalidades da época.

Altar de Nossa Senhora do Rosário na sua Igreja em Fortaleza, Brasil
Tive a sorte de ter sido convidado este Dia de Reis de 2014 para uma “Missa de Ação de Graças ao dia de Reis com entronamento dos Reis da Irmandade do Rosário de Fortaleza”, no Brasil. Apesar de, por convicção e ausência de Fé, não me voluntariar a participar na missa, havia a curiosidade da cerimónia de coroação dos Reis eleitos pela Irmandade do Rosário de Fortaleza. Estas irmandades de negros têm registos desde o século XVI, e de Lisboa temos a notícia de uma Confraria devota do altar de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja de S. Domingos, de meados desse século. Curiosamente foi esse largo da igreja palco de um dos maiores e atrozes atos da Inquisição que aí mandou executar mais de mil infelizes de uma vez só.

Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Fortaleza, Brasil
O interesse desta celebração tem a ver com as coroações que, antes da abolição da escravatura, eram efetuadas em ato festivo pelas comunidades negras. E, apesar dos constrangimentos dessa época, a celebração da coroação era verdadeiramente uma festa com funções “teatrais” e que parece ter dado origem a festas de Reizados ou encenações teatrais em alguns países africanos de língua portuguesa. Mas aqui a invocação também nos remete para os Maracatus. Estes seriam um ato final da coroação, um desfile de ostentação que saía da igreja e percorria algumas ruas da cidade, havendo famosas loas com estrofes de “…a nossa rainha já se coroou.” Segundo josé Hilário Ferreira Sobrinho, “…as origens do maracatu se encontram ligadas às procissões em louvor a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.” E continua afirmando que “É sabido que há uma ligação muito próxima do maracatu com as festas de coroação dos reis de Congo, muito festejadas na frente da Igreja do Rosário.” Remete-nos ainda para a notícia de que “Na festa da Senhora do Rosário ocorria a coroação do Rei do Congo, uma tradição que já ocorria em Portugal e foi trazida para o Brasil… Entretanto, as comunidades negras mantiveram o cortejo, a procissão do Rei do Congo, e esse cortejo foi se tornando Maracatu.”

Os Reis de Congo 2014/2015 Cristina Holanda e Ivaldo Paixão
Como muitos sabem integrei durante três anos um grupo de maracatu, tendo desfilado no Carnaval. Por isso esta muita curiosidade permanente em relação aos maracatus. Acresce que a rainha coroada este ano é minha amiga, Cristina Holanda, e que nos conhecemos nos desfiles de maracatu, eu na corte, ela como Oxum. No carnaval transato ambos desfilámos no Afoxé De Oxum de Odalá. As coroações agora efetuadas têm como objetivo presentear personalidades que se envolveram ativamente na promoção, divulgação e defesa das tradições afro-brasileiras enquanto parte da cultura do Brasil. Ao lado de Cristina Holanda, Rainha, foi coroado como Rei Ivaldo Paixão.

A Rainha Cristina Holanda
No final da cerimónia partimos para casa da nova “Rainha” onde familiares e amigos nos reunimos à volta de um Bolo-rei português nascido das mãos habilidosas e generosas de Berta Castro Lopes que o confecionou no seu Restaurante Marquês da Varjota, o meu porto de abrigo quando tenho saudades da cozinha portuguesa, em Fortaleza. Para aqueles que tiverem vontade de por as mãos aos doces, que nunca amargaram, aqui fica a receita.
O Bolo-rei nasceu na Pastelaria Nacional na Praça da Figueira em Lisboa depois de uma visita a Paris do seu proprietário, Balthazar Castanheira Júnior, onde conheceu o “Gâteau des Rois” e, inspirando-se nessa receita, cria esta nova a que chama Bolo-rei e que lança em 1870. Consta que para o seu sucesso muito contribui a opinião favorável de D. Fernando II que seria grande apreciador. Certo é que o Bolo-rei se transformou num ícone nacional da doçaria festiva, e hoje é confecionado em todo no país. Como todas as boas receitas, vai sendo ligeiramente alterado conforme o executor que lhe acrescenta, ou altera um produto ou a proporção dos seus ingredientes. Nos finais do século XX apareceram novidades “concorrentes” ao Bolo-rei como o Bolo-rainha, sem frutas cristalizadas e apenas frutas secas, ou o Bolo-rei escangalhado apenas com frutos secos e doce de gila e formato final alterado. Depois ainda encontramos bolos-reis com doces ou trouxas-de-ovos e bolos-reis até com “marrons glacés”. Curiosamente começaram também a confecionar bolo-rei miniatura que corresponde a uma dose individual. Pessoalmente continuo a gostar de comer à fatia, e muitas vezes, quando sobra e está mais seco, é delicioso fazer torradas e cobrir com geleia de marmelo…! Antes de vir para esta minha temporada no Brasil ainda tive tempo de ir à Pastelaria Versailles, Lisboa, comer uma fatia de bolo-rei com a minha amiga Teresa Martins Marques, autora do imperdível livro “A Mulher que Venceu Don Juan”.

O nosso Bolo-rei
Lamentavelmente perdeu-se a tradição, excesso de zelo pela saúde pública, de cada bolo-rei ter uma prenda e uma fava seca. Na minha terra a prenda (pequena figura associada à igreja católica) seria uma celebração para quem a recebesse e a fava obrigava a um castigo que muitas vezes era ter de comprar um novo bolo-rei e partilhar. No Brasil, no Rio de Janeiro e algumas zonas do Nordeste, contaram-me que pelos Reis se confecionava um bolo em tabuleiro retangular, com massa idêntica à de uma “genoise” (ovos, farinha e açúcar) e que se misturavam por cada tabuleiro três brindes que se escondiam na massa: uma aliança, um dedal, e uma cruz. Ao serem comidas as porções do bolo, os brindes iam surgindo e significavam respetivamente que iria casar, que ficaria solteira/o, e que se iria dedicar a vida religiosa! A quantos terá acertado o brinde?!
Façam sempre a festa, e celebrem comendo e bebendo.
© Virgílio Nogueiro Gomes