Bôla de chicha gorda

 

 

 

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Este título parece estranho para muitos, os trasmontanos identificarão de imediato sobre o que irei escrever. A palavra chicha quer apenas dizer carne, como consta no livro Língua Charra de A. M. Pires Cabral, Âncora Editora, 2013. Aparece ainda noutras obras como no Dicionário do Falar de Trás-os-Montes e Alto Douro de Vitor Fernando Barros, Âncora Editora e Edições Colibri, 2006; no Dicionário dos Falares de Trás-os-Montes de Vitor Fernando Barros, Campo das Letras, 2002; no Dicionário de Trasmontanismos com orientação e coordenação de Adamir Dias e Manuela Tender, Associação Rotary Club de Chaves, 2005; e no Mirandelês de Jorge Golias/Jorge Lage/João Rocha e Helder Rodrigues, Município de Mirandela, 2010. Em todos o mesmo significado: chicha – carne.

 

 

 

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E chicha gorda? Era a expressão para o toucinho de porco, especialmente a parte branca. Pois este pão faz parte das minhas memórias mais antigas e remete-nos para umas famosas e inesquecíveis férias passadas na aldeia de Montezinho, em 1957... Eu teria pouco apetite, era magro e teria dificuldade em comer nas horas tradicionais das refeições da família. Fui levado ao médico que admitiu eu poder sofrer de raquitismo e, de imediato, os meus pais organizaram uma viagem ao Porto para consulta especializada. Depois de bem examinado o médico concluiu que eu não estava doente e os piores cenários foram afastados. Ainda me lembro, num consultório escuro e onde tudo me parecia estranho, de ouvir a voz do médico: o garoto não tem nada, deixam-no à vontade que quando ele tiver fome ele irá comer. Como estão próximos da Serra de Montezinho vão para lá passar férias, ar puro e que corra pela Natureza. Bendito médico. Mal sabia ele que iria levar-me para um período de grande curiosidade alimentar e esta vontade de querer saber o que comia. Foi, pois, nestas férias que descobri a bôla de chicha gorda. Servida ou vendida aos fins de semana como petisco de homens para acompanhar com queijo, enchidos ou presunto, e sempre acompanhada de vinho tinto. Era um petisco de homens e não de crianças. Mas davam-nos um cachico! Por vezes levávamos uma bôla inteira que esburacávamos para comer a parte do pão que estava em contacto com carne. Era e continua a ser a mais gostosa. Antigamente fazia com farinha de centeio. Agora também se faz com farinha de trigo e, para além da chicha gorda, também colocam rodelas de chouriça. Naturalmente que era, e é ainda, feita sem fermentos, apenas massa mãe. Os meus problemas de falta de apetite ficaram definitivamente resolvidos após estas milagrosas férias.

 

 

 

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O meu irmão Jorge, a minha irmã Lina e eu nas famosas férias em Montezinho tendo ao fundo a escola primária e bovinos bebendo água no tanque da praça central

 

Esta bôla não pode ser incluída no capítulo de folares. Estes, sendo confecionados a partir de uma massa de pão, e depois enriquecidos com ovos e azeite, vão mudando o recheio com as variedades do fumeiro trasmontano e, em festas, com galinha do campo e vitela.

 

 

 

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Os manuais de pão não referem esta bôla. No entanto, no livro de Belarmino Afonso, O Cozer do Pão, 1982, no capítulo de A Farinha e a Culinária. Derivados de Pão escreveu: 2 – Bolas de carne – Faz-se um pão de tamanho médio, com a massa do outro pão. Apenas levam toucinho e presunto...

A propósito de vinho e cereais e suas conversas, o Abade de Baçal no tomo X das suas Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, depois o vinho e a aguardente se elogiarem surge o trigo como cereal de elite e quando chega a voz do centeio: ...Tu pelas festas e pelas bodas, E eu sou o que apago as faltas todas. De facto, o centeio foi considerado um cereal menos nobre, mas supria todas as faltas do trigo. Até os escritores raramente se referem ao centeio. O trigo está quase sempre presente.

De Aquilino Ribeiro, no livro O Homem que matou o Diabo, numa viagem às Beiras ... E, veja, com broa de centeio, negra e crivada de olhinhos... Miguel Torga na sua descrição do Reino Maravilhoso, cita o solo rochoso e duro que é capaz de dar pão e vinho... Pão de milho de centeio, de cevada e de trigo... Ainda com Miguel Torga em Diário faz uma referência sobre as malhadas, verdadeiras festas onde não pode faltar o pão centeio...

 

 

 

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António Fontes e João Gomes Sanches fizeram um grande elogio ao centeio no livro Medicina Popular, Âncora Editora, 1999, ao escrever: O centeio é uma das culturas principais do Barrosão e como cereal é a base da alimentação... Para os Barrosões, o conceito de «pão» e de centeio são idênticos... o pão está ligado à simbólica sagrada, por isso é benzido, e nesse ponto o seu poder está para além da alimentação. Pode ser utilizado na prevenção e cura de desarranjos intestinais. ... Também se pode associar o pão aos emplastros, pois absorve os unguentos, o que permite que os locais atingidos sejam tratados permanentemente.

Era, ainda há pouco tempo, o cereal dos pobres. Felizmente está a renascer e a ter mais utilizações. E fico muito contente que as novas padarias apresentem pão com centeio. A bôla das fotos foi confecionada e cozida pela dona Balbina Ferreira, em Gimonde, que tem banca permanente no Mercado Municipal de Bragança. Quando chega a época da Páscoa os locais vão cozer os seus folares naquele forno a lenha, tradição antiga que, aqui, ainda se mantém.

© Virgílio Nogueiro Gomes

 

 

 

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