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A descoberta desta preciosidade foi-me provocada pelo meu amigo Clerton Martins pois, quando não falamos de Maracatu, a conversa vai parar à comida. Exagero meu. Também falamos de outras coisas. Mas, de facto, foi o Maracatu que nos aproximou, e a partir daí percebemos que poderíamos ser amigos. A comida veio depois. E falando de tradições perguntou-me se já tinha experimentado o tira - gosto (petisco), tão tradicional em Fortaleza, a famosa piaba com cachaça. Não, não conhecia nem nunca tinha ouvido falar. Ficou a promessa da prova, que se cumpriu.

A nossa aventura começou, de manhã, no mercado de peixe e marisco no topo da avenida Beira Mar (Mucuripe), onde depois de perguntar se tinham “piaba” recebemos resposta negativa. Continuando o passeio pelas bancas, inesperadamente, estava um cesto de peixes pequenos, que, quando perguntámos ao vendedor de que peixe se tratava respondeu: “piabinha”. Ora, tesouro encontrado! Comprar o produto fresco é outro prazer. E o vendedor informa-nos que esta tinha sido pescada no Titanzinho, praia depois do farol onde as águas são mais tranquilas. Para mim surge a primeira dúvida. Tinha lido que a “piaba” era um peixe de rio, que sobe para desova, e depois desce para as proximidades do mar. Qual era o rio que desaguava no Titanzinho? O Cocó? O Ceará? A geografia não estava certa. Esta questão ficaria para depois.

Importante, agora, era encontrar alguém que pudesse fritar os nossos peixes de acordo com a tradição local. A tradição de piaba frita era presença nas praias junto ao porto, onde todas as barracas, ou botecos, confecionavam. Em viagem guiada, o meu amigo Clerton, lá me levou pelo início da Praia do Futuro (que futuro?) mostrando-me os locais abandonados e as novas barracas que nasceram, expandindo as fixações na praia, as novas modas e um novo conforto. Por minha sugestão parámos na Barraca Cabumba, onde conheço as proprietárias e, pelo que lá tenho comido, pareceu-me que teriam condições para prepararem as nossas “piabas”. A Mónica aceitou o desafio.

Dona Ana se preparou para confecionar as nossas “piabas”. Me explicou como se faz segundo o modo tradicional. Primeiro temperam-se com sal fino, depois é passar as piabas por farinha de trigo onde se encontram pedacinhos de alho. De seguida é só fritar bem, em óleo abundante. Fritar bem significa que o peixinho fica tão bem frito que se come a totalidade, da cabeça ao rabo. Lá avisou o empregado de mesa que as “piabas” estavam prontas. Restava escolher as bebidas, e segundo me contou Clerton, seria apenas cachaça. Aí fiquei pronto para o ritual, apesar de uma expectativa duvidosa. Chegaram as “piabas” bem aconchegadas sobre folhas de alface e com meias limas (ou limões). E a cachaça.

Aguardei a demonstração do meu amigo que engole um trago de cachaça, chupa meia lima (ou limão) e depois mastiga a “piaba”. Neste momento já temos também, à mesa, a minha amiga Marcela, carioca, que explica o seu modo para degustar este petisco: primeiro engole a cachaça e de seguida espreme a lima (ou limão) sobre a “piaba” que mastiga de imediato. Optei por esta sugestão. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Eis uma das grandes aventuras prazeirosas de comer…! Eu a fazer esta experiência e a lembrar-me dos nossos “joaquinzinhos” com uma saladinha de feijão-frade, mas bebendo um tinto leve. Quanto à cachaça só me lembrava dos grandes trabalhos agrícolas durante os quais se “matava o bicho” com bacalhau desfeito, e um copito de aguardente.

Voltando à “piaba” soube que esta também pode entrar num prato completo acompanhada por um verdadeiro ícone do Nordeste Brasileiro que é o sempre presente “baião de dois”: arroz, feijão de corda, queijo de coalho e manteiga de garrafa.

Soube ainda que há algumas variantes, ou antecedentes. Em vez do sal fino também se usava outrora sal grosso. Em vez da farinha de trigo peneirava-se várias vezes farinha de mandioca até obter um pó fino. Também tive notícia que em casa se pode assar na brasa, apenas polvilhada com sal grosso.

Na praia surgem com frequência vendedores de “piaba”, que foram fritas e enfiadas num espeto feito de um galho de madeira. A que adquiri continha treze “piabas”, número de sorte ou azar?! Senti, neste caso muitas saudades da ASAE…

Interessantes foram as discussões seguintes à minha experiência. Conversei com várias pessoas, inclusive profissionais de cozinha, não chegando a acordo sobre os peixes que lhes apresentava, sobretudo em cru. Para uns eram “piabas” para outros eram “manjubinhas”. Houve até um que afirmava serem sardinhas pequenas. Aí interrompi dizendo que sardinha conhecia eu muito bem…, e definitivamente não eram. Ainda houve que me dissesse: o peixe é o mesmo, se apanhado no rio é “piaba” se apanhado no mar é “manjubinha”. Não transformei esta discussão num impedimento para esta crónica. O bom foi ter comido um peixinho frito, regado de sumo de lima (ou limão), acompanhado por uma boa cachaça. E mais importante ainda, e uma prática que se está perdendo, é o ato convivial à volta de um tira – gosto (petisco), ou um prato genuíno recolhido de tradições locais.

Vim depois a descobrir que há um “Maracatu Piaba de Ouro” celebrando 35 anos este ano, na Cidade Tabajara, Olinda, em Pernambuco. Descobri ainda que em linguagem popular se usa a expressão “piaba” quando se trata de apelidar um negócio pequeno ou questão de pouca importância.

BOM APETITE!

© Virgílio Nogueiro Gomes

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