Parece inquestionável que a açorda é uma dádiva da presença dos árabes pelas nossas terras. Parece também que a açorda é um prato de subsistência, provavelmente na sequência de crises alimentares. E a sua chegada até nós deve-se à sua facilidade de confecção e sobretudo à mistura simples de produtos de base. O pão foi sempre, e ainda é, um alimento estruturante da nossa alimentação.
Quando analisamos as fontes, receituário, da presença árabe na península encontramos muitas sopas às quais se adicionava pão esfarelado ou cortado grosseiramente. Parece ser esta a origem das açordas. No entanto quase só na zona sul do país assumimos a designação açorda. Este termo nunca aparece associado às sopas de pão que ainda hoje se confeccionam nas Beiras ou Trás-os-Montes.
E temos a grande variante da açorda, que já não é sopa, e que se transformou num prato de referência em Portugal. Ninguém abdica na zona costeira das variadas açordas de peixes e marisco.
No tratado de cozinha árabe, Kitâb-al-tabîj, dos séculos X e XI, de autor anónimo, encontramos a primeira designação de açorda. Noutro tratado, de Ibn Abd al-Ra’uf, também se refere a açorda, com a designação de Tarid [thari:d] ou Tarida, em árabe, que quer dizer pão migado, ao qual se junta alho, coentros e água quente.
Em consulta de dicionários de árabe encontramos ainda o termo Ath thurdâ, que significa sopa com pão.
Mas é no século XIII que nos surge o mais famoso tratado da época. Trata-se da obra “Fudalat al-Khiwan…” escrito por Ibn Razin Tujibi entre 1238 e 1266, e cujo título eu traduzo, a partir do francês, para “As Delícias da Mesa e os Melhores Tipos de Comida”. Neste livro há um capítulo dedicado às Panades (sopas com pão) logo de seguida ao capítulo do pão. Encontramos 25 receitas de Panades maioritariamente enriquecidas com carnes desde o frango ao capão, passando pelo pombo e borrego ou pelo cordeiro. Também aparecem três receitas de leite que terminam sempre com açúcar e canela pelo que deveriam pertencem ao grupo da doçaria. Curioso é de notar que já existia uma receita de Panade afrodisíaca.
Surpreendente é verificar, quando consultamos receituário contemporâneo dos países do Magrebe, não encontrar as famosas sopas com pão. Será pela alteração na fabricação do pão? E isto devido à influência francesa durante a primeira metade do século XX?
Parece, no entanto, que será desta prática de sopas com pão que nasceram, e se transformaram, as nossas açordas.
Como referi no início o pão, ainda hoje, é um elemento estruturante da nossa alimentação. E no passado o pão teria que ser consumido na sua totalidade pelo seu valor de apoio permanente ao consumo. A sua aplicação na sopa seria uma forma de utilizar o pão mais velho e mais seco. Seria a sua absorção integral.
Encontramos em Gil Vicente possivelmente a primeira designação de açorda, na Farsa dos Almocreves: “Tendes uma voz tão gorda/ que parece alifante/ depois de farto de açorda”. E ainda não havia os actuais conceitos de estética do corpo, que hoje temos!
Todos sabemos que as sopas eram pratos de importância e capazes de fazer uma refeição completa e o pão cumpria bem a missão de a fazer engrossar. A castanha tinha utilização regional e a batata ainda estava longe de aparecer.
No primeiro livro de cozinha impresso em Portugal, de Domingos Rodrigues, “A Arte de Cozinha…”, em 1680, é feita uma clara distinção entre caldos e sopas, sendo que estas eram sempre confeccionadas com pão, ou este adicionado no final. Algumas vezes, e seria designação corrente, chamavam sopas às fatias de pão sobre as quais se colocavam produtos cozinhados especialmente carnes. Também Domingos Rodrigues nos apresenta três sopas doces, sempre com pão e açúcar e canela.
No livro que em seguida se publicou em Portugal, de Lucas Rigaud, “Cozinheiro Moderno, ou Nova Arte de Cozinha…”, em 1780, e com uma preocupação mais elitista da cozinha e a tentativa de instalação da moda francesa, não deixa de referir várias sopas iniciando a confecção da maioria com a preparação do pão. É pois constante que a designação de sopa esteja sempre associada ao pão.
Não encontrei a palavra açorda nestes nossos primeiros dois livros. Será que o termo estava destinado às confecções domésticas?
Em 1876 publica João da Mata o seu “Arte de Cozinha” especialmente destinado aos profissionais. Encontramos aqui a açorda com bacalhau, uma sopa de pão à portuguesa e ainda outras sopas com pão. A açorda aqui receituada não é uma sopa mas uma açorda muito semelhante às que hoje encontramos. Este livro entra com facilidade no século XX e será o manual dos profissionais da época.
Mas é com Carlos Bento da Maia, edição de 1904, com o título “Tratado Completo de Cozinha e Copa”, que as açordas aparecem como confecção culinária e ilustradas com onze receitas, e fazendo bem a separação das muitas sopas com pão. Estamos na época do aparecimento de restaurantes, e a cozinha regional começa a evidenciar-se. Continua a haver, no entanto, um espírito de copiar a cozinha francesa dado que apenas esta é assumida como alta cozinha.
A presença da cozinha regional portuguesa, nos restaurantes, é assumidamente um acto positivo a partir dos anos 40. A imposição legal de nas Pousadas de Portugal, inauguradas a partir de 1942, ser obrigatoriamente servida cozinha regional, e projectadas como locais de elite, levou muitos restaurantes a seguir o seu exemplo. Em 1936 publica-se o livro “Culinária Portuguesa”, de António Maria de Oliveira Bello no qual é verdadeiramente feito o elogia e defesa da cozinha regional, onde são apresentadas sete receitas de açorda. Já mesmo autor tinha publicado no livro “Culinária”, 1928, uma receita de Açorda de Alhos à Portuguesa enquanto sopa à base de pão, sobre a qual se colocava ovos estrelados preparados à parte, ou ovos escalfados… Será a partir desta receita que nos aparece a “açorda à alentejana”, que enquanto açorda é a única sopa do nosso receituário regional? Possivelmente é também a partir dessa receita que na Madeira encontramos várias sopas de pão a que chamam "açordas" com preparo idêntico.
Em 1940 publica-se o livro “Volúpia” de Albino Forjaz de Sampaio, e na minha opinião o primeiro livro de gastronomia em Portugal. O autor na sua descrição do Portugal Gastronómico lá refere a açorda, e apresenta mesmo uma receita em verso do poeta José Inácio de Araújo: “Açorda Portuguesa”, que classificada de invenção portuguesa, alimento fortificante e capaz de ter derrotado os mouros.
Mas qual é a realidade das açordas na cozinha portuguesa? Primeiro temos a açorda/sopa de que a Açorda Alentejana é o melhor exemplo. Depois a glorificação das açordas como prato completo e a imensa variedade de receituário desde o Douro, toda a costa atlântica com peixes e mariscos, da Beira ao Alentejo com o bacalhau, e o Alentejo com as carnes de porco e enchidos. Temos ainda o conceito de açorda como guarnição, ou complemento, de que saboreamos o excelente exemplo com sável e respectiva açorda de ovas. E teremos sempre açordas maravilhosas enquanto mantivermos a qualidade do nosso pão. Podem-se criar novas receitas, e mais inventivas. Pode molhar-se o pão com canja de galinha e misturar depois o marisco. O que não pode ser alterado é o nosso pão.
Forçados seremos a alterar pequenos comportamentos de acabamento de algumas açordas, a exemplo da foto ilustrativa. O prazer de vermos misturar a gema de ovo crua não será mais possível por questões de segurança alimentar. Que pena!
Quanto às sopas de pão estas serão tratadas em texto próximo.
E temos a grande variante da açorda, que já não é sopa, e que se transformou num prato de referência em Portugal. Ninguém abdica na zona costeira das variadas açordas de peixes e marisco.
No tratado de cozinha árabe, Kitâb-al-tabîj, dos séculos X e XI, de autor anónimo, encontramos a primeira designação de açorda. Noutro tratado, de Ibn Abd al-Ra’uf, também se refere a açorda, com a designação de Tarid [thari:d] ou Tarida, em árabe, que quer dizer pão migado, ao qual se junta alho, coentros e água quente.
Em consulta de dicionários de árabe encontramos ainda o termo Ath thurdâ, que significa sopa com pão.
Mas é no século XIII que nos surge o mais famoso tratado da época. Trata-se da obra “Fudalat al-Khiwan…” escrito por Ibn Razin Tujibi entre 1238 e 1266, e cujo título eu traduzo, a partir do francês, para “As Delícias da Mesa e os Melhores Tipos de Comida”. Neste livro há um capítulo dedicado às Panades (sopas com pão) logo de seguida ao capítulo do pão. Encontramos 25 receitas de Panades maioritariamente enriquecidas com carnes desde o frango ao capão, passando pelo pombo e borrego ou pelo cordeiro. Também aparecem três receitas de leite que terminam sempre com açúcar e canela pelo que deveriam pertencem ao grupo da doçaria. Curioso é de notar que já existia uma receita de Panade afrodisíaca.
Surpreendente é verificar, quando consultamos receituário contemporâneo dos países do Magrebe, não encontrar as famosas sopas com pão. Será pela alteração na fabricação do pão? E isto devido à influência francesa durante a primeira metade do século XX?
Parece, no entanto, que será desta prática de sopas com pão que nasceram, e se transformaram, as nossas açordas.
Como referi no início o pão, ainda hoje, é um elemento estruturante da nossa alimentação. E no passado o pão teria que ser consumido na sua totalidade pelo seu valor de apoio permanente ao consumo. A sua aplicação na sopa seria uma forma de utilizar o pão mais velho e mais seco. Seria a sua absorção integral.
Encontramos em Gil Vicente possivelmente a primeira designação de açorda, na Farsa dos Almocreves: “Tendes uma voz tão gorda/ que parece alifante/ depois de farto de açorda”. E ainda não havia os actuais conceitos de estética do corpo, que hoje temos!
Todos sabemos que as sopas eram pratos de importância e capazes de fazer uma refeição completa e o pão cumpria bem a missão de a fazer engrossar. A castanha tinha utilização regional e a batata ainda estava longe de aparecer.
No primeiro livro de cozinha impresso em Portugal, de Domingos Rodrigues, “A Arte de Cozinha…”, em 1680, é feita uma clara distinção entre caldos e sopas, sendo que estas eram sempre confeccionadas com pão, ou este adicionado no final. Algumas vezes, e seria designação corrente, chamavam sopas às fatias de pão sobre as quais se colocavam produtos cozinhados especialmente carnes. Também Domingos Rodrigues nos apresenta três sopas doces, sempre com pão e açúcar e canela.
No livro que em seguida se publicou em Portugal, de Lucas Rigaud, “Cozinheiro Moderno, ou Nova Arte de Cozinha…”, em 1780, e com uma preocupação mais elitista da cozinha e a tentativa de instalação da moda francesa, não deixa de referir várias sopas iniciando a confecção da maioria com a preparação do pão. É pois constante que a designação de sopa esteja sempre associada ao pão.
Não encontrei a palavra açorda nestes nossos primeiros dois livros. Será que o termo estava destinado às confecções domésticas?
Em 1876 publica João da Mata o seu “Arte de Cozinha” especialmente destinado aos profissionais. Encontramos aqui a açorda com bacalhau, uma sopa de pão à portuguesa e ainda outras sopas com pão. A açorda aqui receituada não é uma sopa mas uma açorda muito semelhante às que hoje encontramos. Este livro entra com facilidade no século XX e será o manual dos profissionais da época.
Mas é com Carlos Bento da Maia, edição de 1904, com o título “Tratado Completo de Cozinha e Copa”, que as açordas aparecem como confecção culinária e ilustradas com onze receitas, e fazendo bem a separação das muitas sopas com pão. Estamos na época do aparecimento de restaurantes, e a cozinha regional começa a evidenciar-se. Continua a haver, no entanto, um espírito de copiar a cozinha francesa dado que apenas esta é assumida como alta cozinha.
A presença da cozinha regional portuguesa, nos restaurantes, é assumidamente um acto positivo a partir dos anos 40. A imposição legal de nas Pousadas de Portugal, inauguradas a partir de 1942, ser obrigatoriamente servida cozinha regional, e projectadas como locais de elite, levou muitos restaurantes a seguir o seu exemplo. Em 1936 publica-se o livro “Culinária Portuguesa”, de António Maria de Oliveira Bello no qual é verdadeiramente feito o elogia e defesa da cozinha regional, onde são apresentadas sete receitas de açorda. Já mesmo autor tinha publicado no livro “Culinária”, 1928, uma receita de Açorda de Alhos à Portuguesa enquanto sopa à base de pão, sobre a qual se colocava ovos estrelados preparados à parte, ou ovos escalfados… Será a partir desta receita que nos aparece a “açorda à alentejana”, que enquanto açorda é a única sopa do nosso receituário regional? Possivelmente é também a partir dessa receita que na Madeira encontramos várias sopas de pão a que chamam "açordas" com preparo idêntico.
Em 1940 publica-se o livro “Volúpia” de Albino Forjaz de Sampaio, e na minha opinião o primeiro livro de gastronomia em Portugal. O autor na sua descrição do Portugal Gastronómico lá refere a açorda, e apresenta mesmo uma receita em verso do poeta José Inácio de Araújo: “Açorda Portuguesa”, que classificada de invenção portuguesa, alimento fortificante e capaz de ter derrotado os mouros.
Mas qual é a realidade das açordas na cozinha portuguesa? Primeiro temos a açorda/sopa de que a Açorda Alentejana é o melhor exemplo. Depois a glorificação das açordas como prato completo e a imensa variedade de receituário desde o Douro, toda a costa atlântica com peixes e mariscos, da Beira ao Alentejo com o bacalhau, e o Alentejo com as carnes de porco e enchidos. Temos ainda o conceito de açorda como guarnição, ou complemento, de que saboreamos o excelente exemplo com sável e respectiva açorda de ovas. E teremos sempre açordas maravilhosas enquanto mantivermos a qualidade do nosso pão. Podem-se criar novas receitas, e mais inventivas. Pode molhar-se o pão com canja de galinha e misturar depois o marisco. O que não pode ser alterado é o nosso pão.
Forçados seremos a alterar pequenos comportamentos de acabamento de algumas açordas, a exemplo da foto ilustrativa. O prazer de vermos misturar a gema de ovo crua não será mais possível por questões de segurança alimentar. Que pena!
Quanto às sopas de pão estas serão tratadas em texto próximo.
BOM APETITE!
(C) Virgilio Nogueiro Gomes
Foto: Adriana Freire