Podemos bem dizer que o cabrito é uma carne de festas, sendo a principal a Páscoa. Domingo de Páscoa significa o retomar da alimentação a um ritmo normal, terminado o jejum que os católicos se impõem durante a Quaresma, desde quarta-feira de Cinzas que a prática obrigava a comer peixe durante os quarenta dias que separavam o Carnaval da Páscoa. Depois passou o jejum a ser obrigatório apenas às sextas-feiras e esta tradição mantém-se ainda em alguns países, quase ritualizado, fazer uma refeição de peixe nestes dias. Mas o cabrito não é só da Páscoa. É também dos casamentos de interior, e de todas as outras festas. Na linha do Cabrito encontramos confeções e tradições de consumo muito próximas do Borrego ou do Carneiro, a família dos caprinos, sobre os quais não escreverei desta vez por falta de espaço. Da Bíblia (Novo Testamento), encontramos um “Cabrito com Cominhos”. Já na Antiga Roma o cabrito é referido na alimentação, apesar de em menor número que o porco ou o leitão que eram os produtos de grande referência e obrigatórios em banquetes. Possivelmente o cabrito não participava em banquetes pelo facto de ser um alimento de sacrifício de dedicação aos deuses. No entanto encontramos várias receitas no primeiro livro de receitas de Apício, oito no total e sempre em paralelo para cabrito ou borrego. Muito curiosas são as receitas apresentadas por Ibn Razin al-Tugibi, mais recentes (1227-1293) com quarenta e seis para ovinos, dezasseis para cordeiro e apenas uma para cabrito.
O “Cabrito Assado” é o que eu considero um verdadeiro ícone da gastronomia nacional, constando de receituário do norte ao sul do país. Mas para orgulho nacional na confeção dos nossos pratos deveríamos ter o hábito de adquirir “produtos qualificados” e para o cabrito já encontramos: Cabrito da Beira IGP, Cabrito da Gralheira IGP, Cabrito das Terras do Alto Minho IGP, Cabrito de Barroso IGP, Cabrito do Alentejo IG e Cabrito Transmontano DOP. O cabrito é habitualmente morto até um mês e meio de vida tendo sido praticamente alimentado apenas pelo leite materno daí que a sua carne seja tenra e de cor rosada.
Mas vamos ver como o encontramos confecionado. Os puristas afirmam que para apreciar a sua qualidade, o cabrito deve ser grelhado. Grelhado encontramos na Beira Alta, simples com sal e borrifado de azeite, vinagre, sal e pimenta, com a ajuda de um raminho de salsa. Ainda no Minho e Trás-os-Montes o encontramos grelhado sendo que por vezes é adicionado colorau ao tempero. No entanto é assado a forma como mais o vamos encontrar nas diferentes confeções regionais. E começamos pelo Minho. O cabrito é deixado de véspera barrado por uma massa feita com cebola picada, alho esmagado, salsa picada, vinagre, colorau, pimenta e sal grosso. No dia seguinte e antes de ir ao forno dão-se pequenos golpes onde são colocadas fatias de toucinho cortadas fininhas. Barra-se agora o cabrito com banha de porco e vai ao forno assar inteiro. É acompanhado por um arroz feito com os miúdos do cabrito, presunto, chouriço e também com açafrão. Já em Trás-os-Montes, embora recheado também é assado. Se prepara uma massa com alho esmagado, sal, pimenta, colorau e louro. Barra-se o cabrito e é colocado em tabuleiro para ser regado por vinho branco e depois fica de adobe de véspera. Prepara-se o recheio com batatas cortadas aos cubinhos, azeitonas, pedaços de presunto entremeado, salpicão às rodelas, pimenta, cravinho da índia e banha de porco. Recheia-se o cabrito e coze-se a barriga com linha. Coloca-se no espeto e vai assar em lume brando e vai-se regando com azeite. Depois de assado e trinchado o seu acompanhamento é o recheio. Ainda para não sair de Trás-os-Montes temos a invulgar receita da Serra de Montezinho. O cabrito é completamente pelado e prepara-se uma massa com banha de porco, alhos esmagados, sal e colorau picante. Barra-se bem o cabrito por dentro e por fora. Entretanto em cova aberta na terra queima-se um pouco de lenha. Quando a lenha estiver ardida retiram-se as cinzas e a cabrito já está completamente embrulhado em couves e bem atado. Coloca-se o cabrito na cova e sobre o cabrito umas lajes de pedras finas, habitualmente xisto, sobre as quais se coloca nova lenha e vai arder até ao fim. Quando terminar o fogo, o cabrito está assado. Mas recheado ainda temos uma receita especial de Barril de Alva, que recheia o cabrito com um picado feito com os miúdos do cabrito. Depois assa no forno e acompanha-se com salada de agriões. Assado encontramos ainda na Beira Alta, Ribatejo e Alentejo. Assado à Moda de Leitão também encontramos à volta de Coimbra. Mas no Ribatejo vamos encontrar Cabrito Frito. Depois de ficar a marinar algumas horas, usam-se especialmente pernas e mãos, em vinho branco, alhos esmagados, louro, sal, pimenta e limão, escorem-se e passam-se por farinha para fritar em azeite bem quente. À medida que a carne fique frita retira-se até que todos os pedaços estejam fritos. Volta-se a colocar os pedaços de cabrito no azeite ao qual se junta a marinada e fica a ferver um pouco juntando um ramo de salsa. Acompanha-se com batatas assadas nas brasas. Receitas mais isoladas encontramos ainda o “Cabrito Ensopado”, especialidade de Fornos de Algodres. Apenas com o espinhaço do cabrito, faz-se um refogado com banha de porco e cebola, adiciona-se tomate e picante, e rega-se com vinho branco. Depois de cozido e partido em pedaços deita-se sobre fatias de pão duro. Mas a receita que mais precisa de divulgação, para não se perder, é o “Cabrito Estonado” da Beira Baixa, cuja receita e demonstração se encontra perfeitamente ilustrada no DVD “Os Gestos dos Sabores” produzido pela Associação para o Estudo e Promoção das Artes Culinárias. No Minho ainda encontramos algumas versões de “Caldeirada de Cabrito” em especial da Serra D’ Arga. Depois o Cabrito Montez do Gerês, e a famoso arroz de forno que recebe os pingos da assadura do cabrito.
Vamos encontrar em terras de língua lusa como em Angola uma famosa receita de “Caldeirada de Cabrito” que, quando este não se encontrava, se poderia substituir por impala. Ainda “Cabrito Assado” e “Cabrito com Inhame”, em Cabo Verde.
Mas por favor, nos estabelecimentos de restauração, quando não for cabrito não lhe chamem tal. Invoquem os seus antepassados. De “cabritinhos de leite” guardo de boa memória e salivando, os do Torres em Vila Verde ou do Geadas em Bragança.
Queria ainda ironizar sobre algumas expressões populares como “ andar ao cabrito”. Nunca entendi a ligação. A expressão talvez se deva, pelos prazeres implícitos, associarem a tenra carne do cabrito por gostosa, e delicada.
Não esqueçam, um bom vinho ajuda o cabrito a saber melhor.
© Virgílio Nogueiro Gomes
ABRIL 2011