Hoje uma crónica diferente. Com tantos livros de receitas a serem publicados, muitos de qualidade duvidosa, cada vez mais aprecio os cadernos de receitas que vou encontrando. E vou escrever sobre o caderno de receitas de minha casa, quer dizer, o de minha Mãe.

Sempre me apareceram como uma caixinha de surpresas. Os cadernos de receitas de casas onde o prazer da mesa era uma evidência, eram uma relíquia apenas herdada por quem os merecia. Escritas de continuação, em cadernos agrafados ou antigamente cozidos e, com estas precauções, garantindo que não desapreciam algumas folhas. Habitualmente tinham apenas uma caligrafia, revelando os segredos de quem o escrevia. Depois a geração seguinte fazia-lhe anotações. Acrescentos.

Para além dos cadernos de receitas dos conventos, que muitos foram devidamente tratados e bem divulgados, os das famílias assumiram pouca dimensão, nos estudos e nas publicações. Muito interessante é a publicação do livro “Receitas da casa do mosteiro de Landim”, da autoria de Maria Adelaide S. N. de Faria e Isabel Maria Fernandes, e editado por Despertar memórias. Na altura da sua publicação escrevi: “Fantástico. Um livro fora da época natalícia, que é delicioso e guloso. Pouco se tem publicado sobre estudos de cadernos de receitas. Estes revelam, de facto, uma cozinha experimentada e praticada no meio familiar. São relatos diretos da experiência de sucesso. Estas receitas apresentam uma cozinha reflexo da realidade doméstica sem importações experimentais ou de exibicionismo.

Noutro contexto foi também publicado um trabalho de análise de um livro com anotações que é uma contribuição importante para o estudo desta cozinha familiar que é o trabalho de Francisco Sampaio, e publicado pelo Grémio Literário de Vila Real, em 2009, a propósito de “O Livro de Cozinha da Escritora Emília de Sousa Costa”.

A vantagem de estudar estes cadernos é poder ajuda-nos a compreender melhor a evolução das receitar e fixar, no tempo, a forma como se comia. Sim, porque estes cadernos estão bem datados. Certo que para além do caderno de receitas da Infanta Dona Maria (1538-1577), não é fácil encontrar cadernos de receitas de famílias anteriores ao século XIX.

A escrita estava reservada a uma elite, à qual pertencia a Igreja, e por isso só encontramos registos nos conventos anteriores àquele século. Claro que na Corte havia quem escrevesse e, o caderno da Infanta, tem três caligrafias diferentes, possivelmente pela pressa que ela teria antes de partir para a nova Corte pelo seu casamento com Alexandre Farnesio, 3º Duque de Parma. A saudade das suas receitas preferidas estava garantida, em alívio, pela possível confeção no seu novo paradeiro. Talvez por isso vamos encontrar algumas receitas semelhantes em Roma, e em Florença, como o nosso arroz doce a que chamaram arroz à portuguesa.

Tenho tido a sorte de poder observar alguns cadernos de receitas. E poder analisar o seu conteúdo, confirmando sempre que a maioria das receitas pertencem ao capítulo da doçaria. Possivelmente porque os doces exigem maior exatidão das quantidades dos produtos, ou porque a doçaria era uma melhor forma de encerrar uma refeição com alegria. Assim a necessidade de variar com mais facilidade. Quanto aos salgados surgem, por vezes, surpresas porque eram receitas que não faziam parte da identidade regional e assim representavam um “mimo” de inovação. Próximo dos doces encontramos, algumas vezes, um receituário de licores caseiros, que tanta importância tivera nos dois séculos anteriores. Agora é só comprar já feito. Mas não é a mesma coisa. E sobretudo lhes falta a emoção associada a sabermos quem nos tinha preparado aquelas delícias.

Recentemente recebi um presente. A minha irmã Conceição, herdeira do caderno de receitas de nossa Mãe, fez cópia do caderno e distribuiu pelos irmãos. Em boa hora, e para nosso prazer.

Não é um caderno grande, nem de receituário de exceção. Está datado o seu início, 1947, ano do seu casamento, e exatamente no ano em que se publica em Portugal a 2ª edição do Pantagruel de Berta Rosa Limpo, e cuja edição o meu Tio António lhe terá ofertado pelo casamento. Pela morte prematura de minha Avó, a minha Mãe sempre foi destinada para a cozinha. E confessava que gostava de fazer doces!

O caderno tem sempre a mesma caligrafia, verificando-se algumas alterações possivelmente pela evolução, no tempo, da escrita. Tem cento e trinta páginas, contendo dezoito receitas de pratos salgados, setenta e duas receitas de doçaria (sendo que três são gelados), e apenas uma receita de um licor de ginja.

Não encontro neste caderno receitas de pratos que me habituei a comer e que ainda hoje lembro. A explicação será que eram tantas vezes confecionados que não haveria necessidade do registo. E são muitos, esses pratos! Não encontro a receita das “Repolgas Guisadas”, do “Cabrito Assado”, do “Leitão Recheado”, do “Bacalhau à Espanhola”, dos “Guisados de Ossos”, do “Congro na Panela”… Muitas destas receitas eu consegui reconstituir, com conversas, muitas vezes telefónicas, e durante algumas visitas. Outra sorte tive quando, para mim, redigiu, expressamente, a forma de confecionar todos os enchidos que se faziam em nossa casa, depois da matança de porco, e que espero proximamente vir a publicar.

Mas vamos às receitas salgadas que aparecem no caderno e que eu arrisco afirmar que lá foram inscritas por serem novidade, e registadas no caderno ajudavam a memória sempre que surgia o apetite para aquela iguaria.

A primeira é um “soufflé”, que apenas regista a base sem citar os produtos variantes. Compreende-se que em meados do século passado esta receita seja uma novidade, direi mesmo uma sofisticação. Sem qualquer ordem de preferência, e apenas por ordem alfabética, encontramos “Arroz à Indiana”, “Arroz de Marisco” e “Arroz de Pato”. Depois uma “Bola de Carne” com ligeiras diferenças em relação ao Folar tradicional, e no mesmo grupo um “Bolo de Chouriço”. Outra novidade para a época, o “Caril de Frango”, e uns “Croquetes de Batata”. Vindas do Alentejo surgem logo no início da Caderno “Empadinhas de Frango”. Fora da nossa identidade, mas próximo, está o “Folar de Valpaços”. Curiosamente aparece uma “Meia Desfeita de Bacalhau” e uns “Pasteis de Carne”, feitos com massa tenra. Muito interessante para a época e local é a receita de “Rolinhos de Espada com Molho Mousseline”, atendendo à dificuldade de chegada de peixe fresco, a utilização de alho francês (porro) e ainda mais interessante a utilização de “mousseline”. Continuamos com uns “Rolinhos de Fiambre”, “Sopa de Rabo de Boi” e uma receita muito boa de uma “Sopa Seca de Espargos”. Para terminar os salgados, uma “Tarte de Queijo” e uma “Torta de Carne”. Como se pode observar, nenhuma “transmontanice” surge nestas receitas. E em minha casa comia-se muito à “Transmontana”! Portanto, as receitas apresentadas, são as receitas que não se fariam com regularidade. Por isso a necessidade do registo pois a prática, distante, não permitia memorizar.

Sobre a receita do “Licor de Ginja” não me irei alongar, e começar a tecer alguns comentários sobre a doçaria.

Comecemos pelos bolos inteiros. Estes raramente serviam de sobremesa. Eram para o chá, para o lanche, ou para rapadela rápida entre refeições. A variedade é grande e aparece vinte e uma receitas. No caso do “Bolo de Amêndoa” aparece em três versões sendo que duas são atribuídas à minhas tias Berta e Inês. Saudade sinto do “Bolo Centeio” com a curiosidade de ser confecionado com açúcar amarelo. Depois ainda há o “Bolo Rosas” e “Bolo Rico de Amêndoa e Chila”, ambas a lembrarem-me bolos de tradição conventual pela consistência e riqueza de produtos utilizados. Surpresa é o “Bolo Japonês”, sendo um bolo com nozes e sumo de laranja. Não falta o “bolo de Prata”, como existe em todo o país, com variantes, mas com o propósito de consumir claras, sobras de tantas gemas usadas em doçaria. A lista de bolinhos, bolachas e broinhas é recheada e de alguns deste já escrevi crónicas individuais para alguns. Mas em todas estas receitas há um ingrediente que raramente é apresentada a quantidade: a farinha, que quase sempre está escrito “ a que necessitar”. Claro que este detalhe evidencia que as (os) utilizadoras destes cadernos já tinham alguma prática e a indispensável sensibilidade para a consistência das massas. Curiosamente a grande parte da doçaria das festas, com Natal incluído, não constam deste caderno. Talvez porque se sabia de cor a receita! Espantosa é a coleção de receitas de pudins. Desde o “Pudim das Antilhas”, “de Abóbora”, “de Amêndoa”, “de Café com Natas”, “de Cenoura”, “de Coco”, “de Laranja”, “de Maçã”, “de Mármore”, e “de Pão”, faltando a “Flan” e o “Francês” que tanto me lembro de comer. Talvez para vos abrir o apetite, é possível que venha a publicar a totalidade destas receitas.

Curiosamente, esta prática de cadernos de receitas, também a encontrei no Brasil, e alguns cadernos, religiosamente guardado. Tive a sorte de ter acesso ao de uma família de Minas Gerais onde só “pães de queijo” são mais de uma dúzia.

Bem, o que eu gostaria era assistir ao aparecimento de mais cadernos, que fossem estudados e publicados. Numa época que parece a culinária e a gastronomia estarem na moda, melhor se faria publicar as receitas que foram por gerações seguramente testadas e conservadas no anonimato, e com uma humildade como se de uma segredo de Vida se tratasse.

© Virgílio Nogueiro Gomes

Na imagem um pequeno recorte pelo qual se pode observar alguma falta de informação, e sentir o necessário cuidado de interpretar o texto.

Este texto, agora revisto, foi publicado na Revista BÔ nº 3 – Inverno 2012