(Vale do Corgo)
Não me incomoda que exclamem: lá vem Trás-os-Montes outra vez! É a minha grande referência. Cada pedra que salta me traz recordações. Desta vez a minha viagem tinha dois motivos. O primeiro a homenagem a pessoas e unidades que se notabilizaram nas artes alimentares em Vila Real, e outro que foi o de conhecer o crescimento da família em Bragança, a minha sobrinha neta Alice. O programa em Vila Real foi coordenado pelo meu Amigo Elísio Amaral Neves que não descurou os mais pequenos detalhes. A sua imaginação, a sua cultura, e o amor à sua “terra” levaram-no a desenvolver um projeto de homenagem a locais e pessoas. “Sítios, sabores e saberes da gastronomia vila-realense” foi o título escolhido para as atividades dos dias 19 e 20 de junho. O programa teve uma parceria ente a Câmara Municipal de Vila Real, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e o Grémio Literário Vila-Realense.
Começámos o dia com uma visita a Água do Marão, exploração aquífera apenas existindo há dezanove anos e é já um caso de sucesso. Ainda pequeno, lembro-me de fazermos paragens nas fontes que encontrávamos à beira da estrada na ligação de Amarante para Vila Real. Independentemente da sede parávamos sempre. Muitas vezes chegava o pretexto de termos um carro pesado à nossa frente. Pois Água do Marão, faz recolha das águas subterrâneas e o respetivo enchimento em garrafas que a linha de fabrico produz. De rigor a água com que são lavadas as garrafas, é a mesma que enche a garrafa para manter a qualidade do conteúdo. Um bom princípio de dia.
(Dona Maria Celeste e eu, durante a conversa)
A paragem seguinte foi a Quinta de Santo António, espaço para eventos, em Vila Real, onde nos esperava Dona Maria Celeste Carvalho Pipa. Esta Senhora está associada à fundação do famoso restaurante “Espadeiro”, e à divulgação de uma receita, que se espalhou pela região, que é o “Joelho da Porca” e cuja receita nos foi entregue. O restaurante Espadeiro vem na sequência de heranças transmitidas desde o Hotel Vilarealense, fundado em 1886, depois a Pensão Mondego, 1916. Maria Celeste casa em 1961, e em conjunto com a sua sogra, e apoio do marido, abre o restaurante Espadeiro em 1968. No ano seguinte já o meu Amigo João Leite Gomes celebra lá o seu casamento. Da lista do restaurante ainda há quem se lembre das famosas Carnes Frias, designadamente da “Língua Afiambrada”. O bacalhau era presença importante especialmente à Moda do Mondego, à Gomes de Sá, à Brás, ou Assado no Forno. Só no norte se trata a pescada com firmeza. No Espadeiro em Filetes, Assada do forno, ou a emblemática à Primavera. Nas carnes o Cabrito Assado, a Vitela Assada ou Estufada, as Costeletas de Vitela, o Cozido à Portuguesa, o omnipresente Arroz de Forno e ainda o Arroz de Frango e Arroz de Rabo de Boi. A convite da Região de Turismo, 1983, vai a Osnabruck, Alemanha, fazer uma semana gastronómica e é convidada para um almoço local durante o qual lhe servem o tradicional “Eisbein” cuja tradução significa “perna gelada”. E chama-se assim pois, depois de cozida ou defumada, era congelada ou conservada no frio para consumo posterior. Na Alemanha este prato é acompanhado por chucrute e batata cozida. Depois de chegar a Portugal, e verificando o pouco aproveitamento que se dava a esta parte do porco, decide experimentar uma forma de cozinhar os joelhos de porca. E apenas de porca pois tem um cheiro menos intenso do que os machos. Depois de cozer os joelhos por meia hora, colocam a marinar, por vinte e quatro horas, num preparo de colorau, alho esmagado, louro, azeite, vinho branco e banha, tudo temperado com sal e pimenta. Vão ao forno com lume forte, em assadeira, tendo o cuidado de ir regando com o molho da marinada. Pronto e bem tostadinhos, servem-se com o molho à parte e acompanha com couves salteadas. O importante nesta receita foi a “moda” instalada nesta de região de copiarem os “joelhos da porca” e em poucos anos foi fácil encontrar em muitos estabelecimentos próximos. Eu lembro-me de receita semelhante me ser servida em Alijó, mas os joelhos eram acompanhados por feijoca cozida.
(Joelho da porca)
(Couves salteadas)
Seguimos para o restaurante Chaxoila, espaço de um sonho de vida de Dona Maria Fernanda Viana Brito. Apenas com sete anos de idade, e a irmã mais velha de uma prole de sete irmãs, ficou sem Mãe e, naquele tempo, destinada à cozinha onde aprendeu a sua forma de vida. No decorrer do ano de 1947, o casal Maria Fernanda Viana de Brito e Armando Teixeira Ribeiro, projetaram e iniciarama construção do que é hoje a "Casa de Pasto Chaxoila". No ano seguinte casaram-se e abriram as portas com o nome de "Taberna do Chaxoila". Esta designação deve-se ao facto de Senhor Armando ser conhecido por o "Chaxoila", vocábulo que significava sachola na sua humilde pronúncia. Este estabelecimento ficou rapidamente conhecido pela qualidade do seu vinho regional e por petiscos como as iscas de bacalhau, petingas fritas, sardinhas e enguias de escabeche, ovos cozidos e as iscas de fígado de cebolada. Alguns anos mais tarde, à taberna associou-se uma mercearia, sendo esta uma boa oportunidade de negócio pela inexistência de locais de venda similares.
Localizada numa das entradas em Vila Real, era posto de paragem obrigatória para os vendedores de lenha e carvão, aos quais emprestava dinheiro para pagarem o “manifesto”. Quando não obtinham dinheiro pagavam com mercadorias. As necessidades locais de alimentação levaram-na a começar a confecionar pratos baratos mas fartos. A sua casa começa a ser conhecida pela qualidade das refeições, e o comércio amplia-se também numa vertente de "pensão". O movimento inerente à construção do novo quartel militar, atual Regimento de Infantaria nº 13, e o volume de tráfego da estrada que liga Vila Real a Chaves vieram dinamizar e desenvolver o negócio.
Nascida em Braga e com raízes em Ponte de Lima, vai aí passar férias a casa de familiares, que são “marchantes”, negociantes de carnes e vendedores em talho, e assiste a preparação de muitas carnes notando as sobras excessivas de dobrada e tripa sem grande utilidade. Assiste também à preparação de tripas enfarinhadas e lembra-se, mais tarde, de criar uma receita utilizando as tripas e, associada a imagem das tripas enfarinhadas, “inventa” uma nova, as "Tripas aos Molhinhos". Estamos em 1955 e faz, em casa, a receita que todos os familiares aprovam. Aplaudida em casa, decide implementar a receita no Chaxoila, pois era um prato de baixo custo. A sua receita era inédita, diferente de tudo o que por cá se produzia. Décadas mais tarde surgiram outras variantes das "Tripas aos Molhos" em outros restaurantes da região, umas recheadas com cenouras, joelho cozido e até mesmo outras com frango.
E começa a nossa conversa com o segredo: as cebolas e o azeite de boa qualidade para o arranque. Num tacho coloca-se bastante cebola às rodelas, e rega-se abundantemente com azeite, e leva-se ao lume brando não deixando a cebola fritar. Deverá transpirar toda a água. e deixa um molho engrossado. Entretanto já se limpou bem a dobrada (bucho de vitela) e as tripas finas. Cortou-se a dobrada em retângulos , colocou-se uma tira de presunto do mesmo comprimento, um raminho de salsa e enrola-se em molhinho. Com pedaços da tripa fina, ataram-se e para não se abrirem fizeram-se um lacinho. Depois é só colocar no tacho da cebola e azeite e deixar cozer, em lume lento, por quatro horas. Temperar com sal, colorau e piripíri. E é tudo.
Mas o doce foi a longa conversa, durante o almoço, que tive com a Dona Maria Fernanda. A forma como explica o sonho que se tornou realidade, com a sua coragem e persistência. Em 1972 aluga o restaurante, retomando a sua exploração no ano seguinte e por mais dez anos. Agora, ampliado, volta lá sempre que pode a matar saudades. E desabafa que ensinou as receitas que ela praticava. O importante é que também a partir daqui se desenvolveu uma receita que se transformou num emblema local.
(Dona Maria Fernanda e sua filha Manuela)
(As famosas Tripas aos Molhinhos)
As homenagens em Vila Real continuaram, mas ficam para próxima crónica. E não esqueçam que estes pratos sabem melhor quando acompanhados com vinho.
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes