De «Olla», para o Cozido

Parece estranho este título. Pego no termo castelhano de «olla» para passar ao nosso cozido à portuguesa. Quando se lê com atenção o primeiro livro de cozinha em Portugal, Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, 1680, no capítulo XVII dedicado a “De olhas”, encontramos cinco receitas chamando a atenção, a primeira receita deste capítulo, a receita de “Olha-podrida” que nos parece ser um “cozido” que depois chamámos “à portuguesa”. Também poderia ser chamado de “ensopado” uma vez que as carnes e os legumes, depois de cozidos são colocados sobre fatias de pão. Veja-se por exemplo, no caderno de receitas da Infanta D. Maria (segunda metade do século XVI), a receita da “Galinha cozida e ensopada”, receita nº 23, cuja galinha depois de cozida é colocada sobre camada de pão e, por isso, “ensopada”.

 

czd1

 

Eis a receita de Domingos Rodrigues, 1680

 

Consultado o Dicionário de Espanhol – Português da Porto Editora, de Julio Martinez Almoyna, 2003, para a entrada “Olla” podemos ler: “panela; cozido de carnes, toucinho, legumes e hortaliças, muito apreciado em Espanha; …”. No Diccionario, de alimentación, gastronomia y enologia española y latino-americana, de Ginés Vivancos, da Editorial Everest, S. A., Léon, 2003, podemos ler para a entrada “olla podrida” o seguinte, e que traduzo diretamente: “Com distintas variantes este histórico cozido ou potagem de clara ascendência castelhana contém, de forma alternada, grão de bico ou feijão branco ou lentilhas, além de galinha, carne de cordeiro, toucinho, pé e orelha de porco, presunto, chouriço, miolos, fígados, molejas, repolho e outras hortaliças. …”

No Diccionario da Lingua Portugueza, composto por Antonio de Moraes Silva, quarta edição em 1831, para Òlha, podemos ler: “Caldo grosso, ou a gordura do caldo, e o melhor delle: v.g. tirara a olha á panella… Olha podrida: caldo de perdizes, gallinhas, carne de porco, chouriços, lombo, tudo misturado, com algumas hortaliças. Arte de Cozinha. # Panella com comer. Vieira…

Mais simples é a definição do Diccionario da Lingua Portugueza, de José da Fonseca e” feito inteiramente novo e consideravelmente augmentado” por J.-I. Roquete, publicado em Pariz em 1873: “Olha, s. f. caldo gordo; o melhor delle; panella com comer.” Parece se ter inspirado no dicionário de Antonio de Moraes Silva.

Estas duas citações remetem-nos para a confirmação de que a denominação “olha” seja bem conhecida em Portugal no século XIX, tendo-se abandonado no século XX.

João Pedro Ferro, no seu livro Arqueologia dos Hábitos Alimentares, Dom Quixote, 1996, cita Domingos Rodrigues com a denominação de “olha castelhana”, “olha podrida portuguesa”, “olha francesa”, “olha moura” e “olha podrida” na programação de refeições para uma semana. Abstenção de “olha” para 6ª feira e sábado.

Recentemente foi publicado no Boletim Cultural 2024-2025 da Câmara Municipal de Mafra o texto “A Alimentação no Real Convento de Mafra”, com autoria de Clotilde Mendes que escreveu: “Encontrámos várias referências à olha, de vaca ou de carneiro, servida quotidianamente aos frades do Real Convento de Mafra; a palavra olha, ou seja, a panela de barro em que era cozinhada a olha. Isto porque na Idade Média, os caldos e as sopas eram mesmo designadas por panela, termo que se referia não só ao próprio recipiente como também aos alimentos que nele eram cozinhados, por oposição aos que eram preparados em frigideiras ou na brasa.”

Vejamos agora como evoluiu em Espanha o termo “olla” em livros de cozinha. Possivelmente a primeira vez que encontramos a denominação “olla” é nos manuscritos do conhecido Sent Sovi, na Catalunha, em 1324. O título ad receita em catalão é “Perdius en Olla”, que poderá ser traduzido por Perdiz Cozida como o fez Robin Vogelzang no livro The Book of Sent Sovi, Barcino – Tamesis, Barcelona 2008.

De seguida fui consultar o livro Libre del Coch (em catalão) e Libro de guisados (em castelhano), cujas edições serão de 1477 e 1520, de Roberto de Nola também conhecido como Mestre Robert. Encontrei duas denominações de receitas onde encontramos o termo “olla”: “Salsa lisa pera volateria de olla” (molho para aves cozido em olla) e “Codonys bullits en olla” (marmelos cozidos na olla). Nestes dois casos o termo “olla” significa apenas o local onde se cozeu: a panela.

Curiosamente foi publicado em Salamanca, em 1607, o livro Libro del Arte de Cozina, por Domingo Hernández de Macera, chefe de cozinha da Universidade de Salamanca (que até propõe uma receita de coelhos à portuguesa, e afirma que é a melhor para confecionar coelhos). Nesse livro surge uma surpreendente receita (LIIII) de “Cómo se há de hacer una olla podrida”.

 

 

czd2

Receita no original de Domingo Hernández de Macera

 

Agora em Castela encontramos o livro Libro del Arte de Cozina, … de Diego Granado, “Oficial de cozina, residente en esta Corte”, (D. Felipe III de España) que publicou em Madrid a primeira edição em 1599 e a segunda, ampliada, em 1614. Consultei para este texto a edição de 1614, atualizada, publicada por Pagès Editores, Lleida, 1991. Aqui surge uma longa e bem explicada receita “Para hacer una olla podrida”. Começa por colocar em panelas separadas os tipos de carnes: na primeiro as de porco salgadas e também javali; na segunda água com sal e carnes carneiro, rins de vitela, carne de vaca gorda, capão, galinha e pombos. Com a água de cozer estes últimos cozem-se de seguida quartos de lebre, perdizes, faisões, tordos, codornizes e depois de cozidos juntam-se todas as carnes. À parte coze-se grão de bico, cabeças de alhos inteiras, cebolas cortadas, castanhas peladas, e feijões. Quando estiverem cozidos junta-se repolho, couve galega, nabos e miudezas de aves e salsichas … é caso para dizer: grande cozido. Parece-me que terá sido esta receita que terá influenciado Domingos Rodrigues.

É, no entanto, Francisco Martinez Montiño, chefe de cozinha do Rei D. Filipe II de Espanha, e que acompanha o Rei na sua estadia de Portugal para assumir o Reino de Portugal como Filipe I, que possivelmente quem mais influenciou a comida da corte em Portugal com a publicação do seu livro Arte de Cocina, Pasteleria, Vizcocheria, y Conserveria, 1611. Apesar de não conter nenhuma receita de “olla podrida”, encontra a denominação com “olla” para: “Olla de liebre”, “Olla podrida en pastel”e “Olla de atun”. Recordo que neste livro podemos encontrar cinco receitas com a denominação “à la Portuguesa”.

Parece fácil aceitar que o nosso “cozido” terá adquirido uma dimensão nacional cujas origem possam estar na nossa vizinha Espanha. Mas, para além de Portugal e Espanha encontramos outros países com confeções semelhantes: na França com o seu pot-au-feu, na Itália com o seu bollito misto, na Bélgica com hochepot e na Holanda com o hotspot.

Em França Urbain Dubois (1818-1901), no seu livro Cuisine de Tous les Pays, Paris 1872 publica uma surpreendente receita que denomina de “Cucido, pot-au-feu à la Portugaise”, com o primeiro nome espanhol e depois a confirmação de que é à portuguesa. Ora, no fundo é um cozido de várias carnes e no final junta arroz, que é acabado de cozer, com pimentão doce e molho de tomate!

 

 

czd3

Eis um cozido que poderia ser de Dubois

 

Mais curioso é encontrar com Joseph Favre (1849-1903) que em 1883 publica o Dictionnaire Universel de Cuisine Pratique, com edições seguintes em 1894 e 1906. Este livro é, possivelmente, o primeiro grande livro, dicionário, destinado profissionais, e tem uma entrada para “Cucido, s.m. (cuis. Portugaise. Potage)” Como no caso anterior trata-se de um cozido, acompanhado de arroz, mas que desta vez limita-se a referir “cuit à point”.

 

 

 czd4

czd5

Uns Cozidos à Portuguesa

 

Independentemente da sua possível origem castelhana, desenvolveu-se uma prática em Portugal cuja população se orgulha do seu “Cozido à Portuguesa”. Este cozido não é um único. Cada região tem o seu, e varia especialmente com a introdução de produtos regionais. Eu gosto, cada vez mais de cozidos à portuguesa apresentados em buffet e poder fazer o meu prato, a meu gosto. Habitualmente peço um prato de sopa paea depois de colocar as carnes e os legumes, regar como caldo do cozido.

Para terminar transcrevo um poema de uma transmontana, como eu, e publicado no livro DIALETOS da alma, de Manuela Vaz de Carvalho, Edições Colibri, 2022

Domingo Gordo de Carnaval

(em Trás-os-Montes)

 

Pote de ferro, bojudo

Aquecido na fogueira

Que há-de fazer o cozido

A ferver manhã inteira.

 

Ponho lá dentre a cozer

A orelheira e o canelo

Mais barriga entremeada

Vai ser um gosto comê-lo!

 

Vai daí ponho outro pote

A esquentar para os grelos

Entaluados com azeite

Mas tem de ser dos azedos.

 

Mais ao lado a guarnecer

A terrina do fumeiro

Moira alheira e salpicão

É o comer costumeiro.

 

Depois para terminar

O banquete com os filhos

Venha lá o panelão

deliciar-nos c’os milhos.

 

E por fim a sobremesa

Como é de tradição

Creme de leite, torrado

Com casquinha de limão.

 

No rescaldo do banquete

De iguarias e unturas

Vamos ao chá de cidreira

Pra dissolver as gorduras!”

Bom Apetite!

© Virgílio Nogueiro Gomes